Nos dias seguintes à carnificina em Israel, em todo o mundo milhares de pessoas saíram às ruas em protesto. Contra a carnificina? Não: contra Israel. Escrevo na sexta-feira, 13, data convocada pelo Hamas para uma internacional caça ao judeu. Chamaram-lhe o Dia da Raiva, uma redundância a cargo de criaturas permanentemente raivosas. De qualquer maneira, as autoridades de diversos países estão alertadas para prováveis “incidentes”, como o esfaqueamento de um funcionário da embaixada de Israel em Pequim. Em Nova Iorque, Londres e Paris, fecharam-se escolas para evitar agressões a alunos judeus, e numa escola aberta no norte de França um professor foi assassinado por criticar a chacina do último Sábado.

Nessas e noutras cidades, árabes e ocidentais andam há uma semana a glorificar em público e aos berros as câmaras de gás e outros métodos de extinção do inimigo. Em universidades de gabarito, estudantes e académicos responsabilizaram os israelitas pela matança de israelitas, enquanto também condenam os israelitas pelos bombardeamentos de Gaza. Há sinagogas, por exemplo a do Porto, profanadas com insultos. O ambiente geral tresanda aos anos 1930, embora o anti-semitismo tenha começado largos séculos antes e não tenha desaparecido depois.

É verdade que os rugidos em curso, uma interessante irmandade de fanatismo islâmico e as inevitáveis facções comunistas, não escondem o ódio ao Ocidente, ou à ideia que mantêm acerca do que o Ocidente é. Mas o ódio a Israel é bastante maior, e confere uma escala desmesurada a tudo isto. Os muçulmanos não se manifestariam perante um conflito entre os EUA e a Bolívia. E mesmo que a extrema-esquerda, em regular harmonia com alguma extrema-direita felizmente marginal, esteja sempre, sempre, sempre do lado oposto ao dos regimes democráticos, a circunstância de a democracia em causa ser Israel eleva a motivação e a fúria a níveis estratosféricos. Se parece anti-semitismo, deve ser anti-semitismo, velha tradição que inspirou “pogroms” desde o antigo Egipto, passando pela Europa medieval, pelo Leste dos cossacos, pela Alemanha nazi e nações ocupadas, pela União Soviética e pelo Médio Oriente anterior a 1948 (pormenor curioso dada a convicção, repetida à exaustão, de que não havia ali judeus até à resolução da ONU).

Há dois mil e setecentos anos, quando os israelitas históricos surgiram na região que, grosso modo, é agora o seu país, que os judeus são discriminados, perseguidos e mortos ao longo da rota da Diáspora. Durante esse tempo, raramente beneficiaram de protecção e nunca da possibilidade de retaliação. Só há bocadinho, ou sete décadas e meia, é que, a partir de um pedaço de deserto e uma imensa vontade, a fundação do actual Israel deu aos judeus um esboço de segurança, constantemente ameaçada e ocasionalmente falível. Pela primeira vez, os judeus deixaram de viver em estado de completa impotência. Pela primeira vez, os judeus tinham forma de se defender, reagir e vingar. Pela primeira vez, graças à existência de Israel, os judeus eram uma força. E se não toleram judeus débeis e expostos à injustiça, os anti-semitas toleram ainda menos judeus fortes e capazes de lutar. Para os anti-semitas, religiosos ou descrentes, Israel é a suprema blasfémia.

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Não vale a pena enganarmo-nos. As únicas palavras sinceras nos desfiles “pela Palestina” são as que exigem a aniquilação de Israel. O resto são eufemismos. A conversa alusiva à “paz”, aos perigos da “escalada”, ao sofrimento do povo de Gaza são o verniz que cobre pessimamente o que vai naquelas alminhas. Por ignorância ou perversão, os manifestantes à solta em Amã, no “campus” de Harvard e no Largo de Camões partilham o sonho do Hamas: apagar Israel do mapa e do território. E, o que é sobretudo repulsivo, no fundo ou à superfície aprovam os métodos do Hamas, incluindo a tortura, a violação e o homicídio de homens, mulheres e crianças, civis jamais inocentes porque “colonos” e “opressores”. Ou seja, invariavelmente culpados porque judeus.

Quanto à lendária “rua árabe”, que hoje atravessa avenidas europeias e que se sente muito mais representada pelos terroristas do que o nosso ecumenismo gostaria, não há surpresas no ódio que expele. Já o anti-semitismo (ou “anti-sionismo”, na versão dos cínicos) da extrema-esquerda surpreendeu alguns, decerto chegados à Terra anteontem. A mim, não. A mim impressiona-me que semelhantes espécimes vivam por aqui, entre as pessoas comuns, e desfrutem do respeito que as pessoas comuns merecem. Eles dão aulas, lideram partidos, votam nesses partidos, comentam nas televisões, cruzam-se connosco no café e no passeio. E é triste ter de conviver com gente que convive bem com a morte alheia, a morte directa e deliberada e executada com crueldade patológica. Para disfarçar, essa gente finge afligir-se com as vítimas colaterais das tropas e das políticas israelitas – e da estratégia do Hamas – como não se aflige com as vítimas, colaterais ou degoladas, de Cuba, da China ou do Sudão. Excepto quando a cartilha manda condenar os carrascos, essa gente não lamenta as vítimas de lado nenhum. No limite, essa gente lamenta a escassez de vítimas em todos os lados. E a de israelitas em particular.

Linhas vermelhas, não era o que por aí propunham uns simples a propósito de irrelevâncias? As linhas vermelhas estão traçadas por natureza: separam, ou deviam separar, a extrema-esquerda da civilização. São desenhadas a sangue.