Talvez a fim de celebrar a presidência do Fórum Social do Conselho dos Direitos Humanos da ONU, que assumiu na quinta-feira, o Irão decidiu devolver ao Afeganistão os mais de cinco milhões de refugiados que fugiram dos talibãs. Não tenho acompanhado o “ranking”, mas deve ser uma das maiores deportações da História – e, dadas as circunstâncias e o destino, sem dúvida uma das mais cruéis. Notícias a propósito? Poucas e breves. Manifestações de protesto e dor nas cidades europeias e americanas, organizadas pela extrema-esquerda e por islâmicos em fúria? Que eu saiba, cerca de zero. “Posts” aflitos das manas Mortágua? Exactamente zero. Mensagens compungidas de Guterres, o Vácuo? Até ver, menos que zero.

Uns dias antes, o Paquistão iniciara a deportação de um milhão e setecentos mil afegãos, com repercussões idênticas, leia-se nulas, no Ocidente. E não, o Público não divulgou um abaixo-assinado de setenta “personalidades” chorosas.

Há anos que os uigures da China, quase nove milhões deles, são reprimidos, torturados, enfiados em campos de trabalho, deslocados em massa e esterilizados. Salvo as vítimas e os carrascos, ninguém, incluindo os “humanistas” do PCP, liga ao assunto.

Há décadas que o povo rohingya, que ainda há pouco tempo chegava ao milhão e meio e hoje não atinge metade, não possui direito à cidadania em Myanmar, antiga Birmânia. De brinde, ainda desfruta de perseguições, torturas, linchamentos, violações sexuais colectivas e aquilo que, antes da banalização do termo, se designava por “genocídio”. A universidade de Harvard pronunciou-se a respeito? Qual quê: os desgraçados nem sequer tiveram direito a uma vigília de dez minutos no Bairro Alto.

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Limitei-me a referir situações em que os oprimidos são muçulmanos, dado que a opressão dos fiéis de outros credos nunca é sequer tratada enquanto tal. A benefício da concisão, excluí tragédias de natureza similar ou comparável que decorrem, igualmente com muçulmanos, no Vietname, nas Filipinas, no Tajiquistão, no Sri Lanka, no Tibete, etc. Não importa. A indiferença ao sofrimento de toda essa gente é absoluta. Aparentemente, a extrema-esquerda e o “mundo islâmico” só se comovem com o sofrimento dos muçulmanos dos territórios da Palestina. Aparentemente.

Na verdade, a extrema-esquerda e o “mundo islâmico” são bastante selectivos mesmo no que toca ao sofrimento dos palestinianos. Se estes morrem a expensas de “rockets” transviados do Hamas, não contam. Se morrem porque o Hamas os utiliza como escudos humanos e concentra armas e centros operacionais em hospitais, escolas, mesquitas e edifícios afins, não contam. Se morrem porque o Hamas os abate a tiro para evitar que fujam das zonas bombardeadas, não contam. Se morrem porque o Hamas confisca água, comida, electricidade e combustível para alimentar a guerra, não contam. Se morrem porque o Hamas os mata sob acusações de colaboracionismo “sionista” ou filiação na Fatah, não contam. Ou contam: contam para se filmar os respectivos cadáveres e acusar Israel. E isto, e só isto, é que conta.

Em nome do rigor, não se pode dizer que a extrema-esquerda e o “mundo islâmico” não se interessam pela quantidade de mortos palestinianos. Interessam sim: reais ou imaginários, quantos mais mortos, melhor. É que, apreciando ou não o Hamas em particular, todos partilham o objectivo do Hamas, que é eliminar Israel. Para isso, todos subscrevem os meios a que o Hamas recorre, os quais curiosamente consistem em eliminar as pessoas que depois se diz que Israel elimina. Desde que, sobretudo após as derrotas de 1948, 1967 e 1973, uma das partes abandonou o combate tradicional, o conflito israelo-árabe deve ser dos raros em que um dos lados faz os possíveis para reduzir as baixas civis do inimigo e o outro lado se esforça por aumentar as baixas civis próprias. A dependência da propaganda leva a que, nesta peculiar guerra, as principais operações aconteçam nos “media” internacionais, quase sempre permeáveis a divulgar “informações” provenientes de uma organização terrorista, e nas cabeças dos fanáticos do Islão e dos fanáticos do marxismo, que por razões não excessivamente distintas se interessam pela demonização de Israel.

Não tenho maneira de pesar os diferentes critérios em jogo. O velho antissemitismo, que por definição Israel atrai, mistura-se com a repulsa pelo Ocidente, que por tradição Israel representa. E o caldo final é este culto das trevas, esta sombra que alguns julgavam enclausurada na memória. Contra as expectativas dos optimistas, regressaram de um passado não demasiado remoto as caricaturas, as teorias da conspiração, as variações revistas e actualizadas da “difamação de sangue”, as ameaças, as agressões, as estrelas de David pintadas nas casas e nas lojas, a vandalização de sinagogas.

A sete de Outubro, o verniz civilizacional partiu-se e o ódio passou a desfilar em público, ruidoso e gaiteiro. “Palestina livre, do rio ao mar”, berra-se na rua, a fingir aflição com mortes que no fundo lhes convêm. Se não há mortes, inventam-se, mediante a intervenção de amadores dramáticos e uma câmara de vídeo. Se as mortes são insuficientes, multiplicam-se por cinco, vinte ou cem. Se são responsabilidade directa ou indirecta do Hamas, culpa-se o tradicional bode expiatório. E grita-se de novo “Palestina livre, do rio ao mar”, na maioria da vezes sem assumir que o sonho geográfico nega a existência física de Israel. O que eles querem, à semelhança de inúmeros sonhadores dos últimos séculos, é que não reste um único judeu. E não ficarão aborrecidos se não sobrarem muitos palestinianos.