São conhecidas as expressões idiomáticas “a mata-cavalos” (a toda a pressa) e “gato-sapato” (com desprezo de algo ou de alguém). A partir do passado dia 11, são expressões que passam também a designar um novo processo legislativo da nossa Assembleia da República. Foi uma inovação reservada para a última sessão plenária desta legislatura. Fixem bem estas referências, pois estes actos costumam criar precedentes que, uma vez inaugurados, repetir-se-ão no futuro. O processo legislativo é de lei a mata-cavalos, porque se realiza a toda a pressa; e, ao mesmo tempo, lei gato-sapato, porque a pressa é obtida pelo completo desprezo das normas regimentais e dos direitos dos cidadãos eleitores.

Foi o Observador que deu a notícia, no dia 11; e, anteontem, no dia 12, seria também tema na Rádio Observador, no “O Bom, o Mau e o Vilão” com Miguel Pinheiro. De facto, no portal da Assembleia, é possível verificar o que se passou, apesar do desinteresse quase geral. A novidade fulminante esteve no projecto de lei n.º 999/XV/2.ª, numeração que poderia ter sido escolhida a dedo para memória futura: “o caso do projecto 999”…  – rufam os tambores em suspense. Deu entrada na manhã do próprio dia 11 (às 9:00 horas, por exemplo) e antes do fim da tarde, não só em menos de 24 horas, mas em menos de apenas 12, a lei já estava aprovada e pronta a seguir. Mais rápido não podia ser.

O que explica ser possível tamanha velocidade? A explicação está em todos os partidos terem estado de acordo. Bloco de Esquerda, Partido Comunista Português, Livre, Partido Socialista, Pessoas-Animais-Natureza, Partido Social-Democrata, Iniciativa Liberal e Chega, todos concordaram com tudo: da esquerda à direita, todos assinaram o projecto de lei n.º 999 e todos o aprovaram por unanimidade. Uma espantosa convergência.

O errado nesse completo acordo não é incidir sobre a substância – independentemente dos comentários que mereça –, mas o facto de o acordo, quanto ao processo parlamentar, ter sido não a unanimidade quanto ao cumprimento das normas regimentais, mas a unanimidade quanto a ignorar e desrespeitar qualquer regra que impedisse a lei de estar aprovada antes do final da tarde. Era a última sessão desta legislatura e os partidos impuseram a aprovação antes de os trabalhos encerrarem.

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O que junta num mesmo processo legislativo o BE e o Chega, a IL e o PCP, o Livre e o PAN, o PS e o PSD? Uma alteração ao Estatuto dos Deputados, que aumenta os direitos a ajudas de custo por deputados, a entrar em vigor em 1 de Janeiro de 2025, embora com efeitos retroactivos aos últimos meses de 2023. Não quero discutir a justeza da medida, que admito ser justificada, embora possam pôr-se algumas questões. Se a medida é consequência da revisão do Regimento em 9 de Agosto de 2023, por que não foi feita logo, evitando este atropelo de última hora? E, se, embora com efeitos retroactivos, a alteração do Estatuto é para entrar em vigor só em 1 de Janeiro de 2025 e todos estão de acordo, por que não se deixou calmamente para a próxima legislatura, em lugar de entrar por este despautério processual?

Os deputados parecem olhar as normas regimentais como se a Assembleia fosse seu quintal privativo e eles fossem donos disto tudo: respeitar ou desrespeitar as regras é igual, desde que estejam todos de acordo. Ora, não é assim. A Assembleia não é quintal de ninguém, mas a casa comum de todos os cidadãos eleitores. E as regras do Regimento não são estabelecidas com relação aos interesses dos partidos e deputados, mas principalmente em razão da democracia e seu funcionamento. Ou seja, o cumprimento do Regimento não está na disponibilidade dos deputados; e as suas normas são do interesse da cidadania, para garantia da regularidade do funcionamento da Assembleia e para seguimento da actividade parlamentar.

Este projecto de lei atropelou várias regras parlamentares, algumas básicas: 1) não teve etapas separadas para a generalidade e a especialidade; 2) não respeitou os prazos para fixação da ordem do dia; 3) tendo aparentemente sido considerado prioritário ou de urgência, não seguiu as regras aplicáveis a estes casos; 4) não foi publicado no Diário da Assembleia da República, antes de ser tramitado para apreciação e deliberação; 5) ninguém pôde apresentar recurso ainda que o quisesse; 6) não foi remetido à comissão parlamentar e, por conseguinte, também não teve relatório, nem nota técnica; 7) violou o prazo mínimo de 48 horas, mesmo em caso de urgência, para conhecimento dos deputados antes de poder ser discutido e votado em plenário; 8) finalmente, no plenário, não houve debate na generalidade (a ordem do dia indicava o agendamento, sem tempos distribuídos); e 9), a acreditar na tabela final das votações, foi feita uma só votação, que amalgamou no mesmo acto a generalidade, a especialidade e a votação final global, em vez de as fazer em separado.

A Nota de Admissibilidade dos serviços apresenta, entre outras, esta questão: “A iniciativa foi agendada pela Conferência de Líderes ou tem pedido de arrastamento?” E responde: “Sim, a iniciativa encontra-se agendada para a reunião plenária de dia 11 de Janeiro de 2024. Consequentemente, não se justifica a sua apreciação (baixa) na generalidade em comissão.” Porém, consultando as súmulas da Conferência de Líderes, verifica-se que nada consta a este respeito, tendo a última reunião sido em 3 de Janeiro, com a próxima anunciada para dia 24. Ora, passando-se tudo na manhã do dia 11 (entrada do projecto, nota de admissibilidade e inclusão na ordem do dia do plenário, à tarde), fica difícil entender como, por um lado, o projecto já estava agendado para plenário e, por isso, era admitido daquela forma, mas, por outro lado, não poderia estar na agenda do plenário, por isso mesmo que não tinha sequer sido admitido.

Alguns dirão que este caso não tem importância, quer pela matéria em si (ajudas de custo de deputados), quer porque todos os partidos estiveram acordo. Pode, desde logo, haver cidadãos a pensar que a matéria também lhes interessa – algumas normas regimentais existem para assegurar transparência e escrutínio dos processos parlamentares e suas decisões. Os deputados não estão por si, mas como representantes dos cidadãos, a quem prestam contas.

O perigo para o futuro é todos terem estado de acordo nestas várias violações do Regimento. No futuro, qualquer maioria pode apoiar-se neste precedente para procurar forçar decisões legislativas em menos de 12 horas de um dia parlamentar, repetindo este método da “carimbadela”: entra de manhã, sai à tarde, com três votações (generalidade, especialidade, global final) numa só. E já está!

Os partidos que forem, então, apanhados em minoria dirão que não poderá ser, porque não há consenso. Mas a maioria responderá que houve consenso sobre aquelas regras regimentais não serem obrigatórias e apresentará justificação específica para a acção. Reforçará que, tendo havido consenso quanto à possibilidade de dispensa daquelas “burocracias” e sendo a regra da democracia a maioria, a maioria poderá também aplicá-la.

As regras processuais são normalmente a garantia da parte mais fraca: as regras impedem que os mais fortes abusem do seu poder. Por isso, é sempre péssima ideia as minorias não velarem pelo seu cumprimento escrupuloso: ficam mais vulneráveis. E, por isso, ficam também mais fracos os cidadãos que é suposto representarem. As minorias não devem dar-se ao luxo de fazer de idiotas úteis.

Ficámos também a saber que a mútua diabolização entre BE e Chega ou entre IL e PCP, por exemplo, não passa de teatro de tablado parlamentar. De parte a parte. Estes partidos estão prontos a convergir e a estarem todos do mesmo lado. Afinal, não são assim tão diferentes. Bem sei que a matéria foi ajudas de custo. Mas podemos desatar a imaginar desenvolvimentos novos deste primeiro “pacto de regime” da actual etapa política do país.

Esta foi uma deplorável e completa falta de respeito pela normalidade do funcionamento parlamentar. E gera preocupação que este “pacto de regime” que uniu todos não tenha sido para servir e honrar o Estado de direito, mas para o golpear e fazê-lo mais fraco. Péssima maneira de, por unanimidade, a Assembleia da República se despedir da 15.ª Legislatura antes de irmos para eleições: uma nódoa. Um sinal de que não precisávamos.