Entreguei-me às autoridades terça-feira, dia 10, por volta do meio-dia, depois de décadas e décadas em que o meu estatuto foi praticamente o de fora-da-lei. As autoridades eram representadas pela urgência do Hospital de Santo António e a minha confissão deve ter sido convincente, já que lá fiquei internado numa enfermaria por doze dias. Somando tudo, aos cinquenta e sete anos, e depois de uma vida sem excessos de moderação particularmente notórios, podia ter sido muito pior.

Talvez um dia, porque se trata de uma experiência comum, e portanto tendencialmente interessante, volte a isto. Não vai ser hoje, de certeza, limitando-me a dizer que há muito me tinha esquecido de quanto se pode sonhar com comida. E quando falo de comida não me estou a referir a sorvetes de cabeça de vitela, a bifes de rodovalho ou a sopas de framboesa, como se chama à comida em certos restaurantes selectos. “Comida” é aqui mesmo aquilo de que falam os programas de Anthony Bourdain, nos seus momentos mais radicais. Não dou exemplos, para permitir o exercício da imaginação.

Se referi a minha aventura hospitalar, foi por causa da liberdade. Toda a gente fala de liberdade como se fosse uma coisa una e absolutamente indivisível, quando ela é, como a virtude segundo alguns filósofos, ao mesmo tempo una e múltipla. Para mais, exigimos liberdades distintas segundo as idades. E, naturalmente, em certos momentos precisamos de rever as exigências anteriores e acomodá-las aos tempos novos, para, desgraça!, as restringir. Perceber-se-á que uma cama de hospital sugira banais reflexões deste tipo. Mais: que as torne praticamente inevitáveis.

Elas ainda ocupavam o meu espírito, dois dias depois de ter voltado a casa, quando, em frente à televisão, assistia ontem às comemorações do 25 de Abril. O 25 de Abril (complementado pelo 25 de Novembro) foi uma coisa óptima e apanhou-me na idade ideal (13 anos), a tempo de Salazar e Marcello Caetano não terem contado quase para nada na minha vida. Claro que uma parte dos mais vocais celebrantes do dia continuam, à superfície e na profundidade do seu espírito, a ver naquilo que se passou depois do 25 de Novembro uma traição aos ideais totalitários que sempre foram os seus. E que o folclore da coisa – a linguagem, a música, o ritual dos cravos – irrita em momentos de maior sensibilidade. Mas desde há muito que a treta – respirar Abril, dizer Abril, viver Abril, e por aí adiante – não tem que nos incomodar demais. Quando muito, dá para rir.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Resta a questão da liberdade. Em frente à televisão, estava a prestar, confesso, pouca atenção ao que se dizia, dedicando o melhor do tempo a um livro já com uns anos de Jean-François Revel sobre a história da sensibilidade gastronómica da Antiguidade aos nossos dias, Un festin en paroles. A questão do livro é a de saber como, em certas épocas, era o gosto, o sabor, de uma refeição e de um vinho e o que é que as pessoas gostavam de comer e beber, qual era o seu gosto. O livro é óptimo, apresso-me a dizer. Mas de vez em quando ouvia, vinda da televisão, a palavra “liberdade”, que, coisa única nas celebrações, me desconcentrava.

Porquê? Volto atrás. A liberdade não é susceptível de uma determinação absolutamente unívoca. É algumas coisas, contra outras coisas, e o peso das coisas que é varia com o tempo, para lá de certos redutos inegociáveis. Por mim, creio que a liberdade individual era, sob muitos aspectos, muito maior, digamos, em 1980, do que é agora. Mas sob outros aspectos certamente que não. O problema está quando esta equivocidade natural e constitutiva do termo é reacalcada e a liberdade é apresentada, não apenas nos seus aspectos mais gerais e vagos, mas nos seus mais ínfimos detalhes, como uma realidade total e perfeitamente definida, susceptível de ser exemplificada alínea após alínea, como “as mais amplas liberdades” de que Álvaro Cunhal gostava de falar. Não é assim. Desses discursos o que mais salta aos olhos, regra geral, é antes o sentimento de uma ameaça à liberdade nas suas condições mais gerais.

Ouço, aqui e ali, lamentos sérios sobre a falta de liberdade que existe na sociedade portuguesa, quer dizer: sobre a falta de uma verdadeira concepção alargada e pluralista da liberdade, como aquela que os clássicos do liberalismo (Tocqueville ou Stuart Mill, por exemplo) defendiam. Percebo e, pela minha vez, levo a sério. Mas esses lamentos tendem a esquecer que qualquer concepção de liberdade encontra os seus alicerces e os seus limites (o seu tecto, por assim dizer) numa tradição. Ora, a nossa tradição, a nossa casinha, é pequenina e esperanças sanguíneas não são recomendáveis: temos de andar sempre um bocadinho curvados. Se fosse preciso prova disso, os discursos de ontem mostraram-no perfeitamente.