“Em democracia, há também a Constituição, a lei, a regra, o precedente, o respeito pela legalidade e pelas decisões dos tribunais, os direitos das minorias e das oposições. Os governos democráticos estão obrigados a respeitar tudo o que é próprio do sistema democrático e não só o voto (…)”

Mário Soares, in “Soares, O Presidente” de Maria João Avillez

1 Já se sabe que o PS é apologista dos dois pesos e duas medidas quando se fala de memória histórica. O que é admissível para os socialistas, não é aceitável para os outros. O que é permitido ao PS, não é admitido aos outros. Os socialistas julgam-se no centro do regime e sem eles a democracia não existe.

É este, em resumo, o posicionamento do PS perante qualquer matéria estrutural que afete a sobrevivência dos seus governos ou o ataque aos Executivos do centro-direita.

E, Mário Soares, um dos fundadores e líder histórico do PS, personificou melhor do que ninguém essa política de dois pesos e duas medidas — que mais não é do que a aceitação de que há uma casta (partidária, no caso) que tem mais direitos do que os restantes.

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2 Vem isto a propósito da principal consequência do caso Galamba: o fim da aliança de conveniência entre o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa e o primeiro-ministo António Costa. Nada mais será como antes — e os socialistas já começaram a atacar Marcelo.

Em primeiro lugar, responsabilizando-o pela crise política. Porque, imagine-se!, o Presidente da República (P) teria colocado nos jornais que desejava que António Costa demitisse João Galamba, o que fez que Costa, o justo, mostrasse ao PR quem manda. Decisão, aliás, reforçada com as ameaças de dissolução do Parlamento por parte de Marcelo — único ponto em que os socialistas têm alguma razão, refira-se.

E, em segundo lugar, tentando condicionar o PR desde já, salientando a ilegitimidade de qualquer ação política futura de Marcelo de intensificar o seu escrutínio enquanto Chefe de Estado.

É mesmo caso para dizer: é preciso de ter lata e tomar os portugueses por parvos!

3 Qualquer pessoa da minha geração com memória política recorda-se perfeitamente do que aconteceu no segundo mandato de Mário Soares como PR. Depois de ter sido eleito em 1991 com uma votação recorde de 70,35% — só possível devido ao apoio do PSD de Cavaco Silva —, Soares foi o verdadeiro líder da oposição ao cavaquismo entre 1992 e 1995.

Perante um PSD que governava o país desde 1985, perante um primeiro-ministro que ia no seu terceiro governo (o segundo com maioria absoluta) com os melhores resultados de crescimento económico e de aumento de poder de compra da população desde 0 25 de abril de 1974 — e que ainda não foram ultrapassados.

Perante um Governo que estava a fazer da transformação e a modernização da sociedade portuguesa um vetor essencial de todas as suas políticas, perante um Executivo que mudou transversalmente o país nas infraestruturas, na Saúde, na Educação, na Justiça, na Administração Pública, no Ordenamento do Território, no Ambiente, na Segurança Social, no sistema fiscal, na Cultura, etc., etc., etc.

Como se vê, o cavaquismo é uma antítese do costismo: enquanto o primeiro-ministro Cavaco Silva  via a política como uma ação transformadora da vida dos portugueses, Costa limita-se aplicar o seu génio político na conquista e na conservação do poder.

Perante o cavaquismo que mudou a face de Portugal para sempre, o que fez o Presidente Mário Soares? Combateu, lutou e conspirou para tentar destruir politicamente Cavaco Silva — e de uma forma quase transparente.

4 O culminar dessa estratégia de desgaste da maioria cavaquista foram as presidências abertas que Mário Soares organizou ao longo do país para mostrar à comunicação social o que estava mal no país. Mas também foi um congresso chamado “Portugal, Que Futuro?”

Se Ramalho Eanes patrocinou um partido político, o Partido Renovador Democrático (PRD), para continuar uma carreira política após sair de Belém, Mário Soares meteu alguns dos seus melhores amigos a organizarem um congresso que reunisse a sociedade civil contra o cavaquismo.

Apesar do guião ter sido escrito por inspiração de Belém, a ideia, claro, era apresentada como se tratasse de uma vontade espontânea da sociedade civil, tendo a comissão organizadora sido formada pelo historiador José Mattoso, a investigadora Maria Sousa mas era coordenada pelo comandante Gomes da Mora — figura proeminente do soarismo que tinha sido diretor das campanhas presidenciais de Soares.

Grande encenador — punha António Costa no bolso pequeno do blazer —, Soares recebeu a comissão organizadora no Palácio de Belém para ser convidado a estar presente para discursar no primeiro dia do Congresso, no qual desferiu um ataque violentissímo ao governo de Cavaco Silva.

O Congresso, que tinha saído da cabeça de grandes figuras como Vítor Cunha Rego e outras, mais não era do que uma tentativa de unir o espaço do centro-esquerda e da extrema-esquerda (PCP, UDP e outros partidos) contra o PSD.

Verdadeira máquina trituradora de líderes do PS — Vítor Constâncio e Jorge Sampaio que o digam —, Belém conseguiu ainda deixar António Guterres (tinha substituído Sampaio como líder dos socialistas) após as legislativas de 1991) profundamente irritado com a ideia do congresso, porque o próprio PS via a iniciativa como uma tentativa de ultrapassagem pela esquerda do principal partido da oposição.

Soares não só inspirava a oposição a agir, como era muito proativo a organizar jantares no Palácio com políticos, empresários, sindicalistas, colunistas — todos críticos do cavaquismo —, como era muito dinâmico a colocar notícias nos jornais, algumas das quais através da sua assessora de imprensa Estrela Serrano.

Muitos outros exemplos poderiam ser dados — Mário Soares era um animal político e todo aquele segundo mandato presidencial é de guerra aberta contra Cavaco Silva — mas estes parecem-me suficientes para o ponto seguinte.

5

É de uma tremenda ironia ouvir os socialistas a atacarem Marcelo Rebelo de Sousa por defender algo que não só é perfeitamente defensável, com reúne o apoio de uma larga maioria dos portugueses: a saída de João Galamba do Governo por ser responsável pelo que acontece no seu gabinete, por ter mentido ao Parlamento e por envolvido o SIS em toda esta trapalhada.

E agora? Será que Marcelo Rebelo de Sousa vai fazer o mesmo que Mário Soares?

Marcelo Rebelo de Sousa tem uma personalidade política muito diferente da de Mário Soares. Porventura, a ideia do Presidente-Rei como forma de exercer o mandato presidencial seja um dos poucos pontos em comum.

O gosto pela lado palaciano e teatral também os une mas Soares gostava do combate em campo aberto. Não se importava de ir para o campo de batalha, como demonstrou ao longo da sua história política. Na luta contra o cavaquismo, as presidências abertas são outro exemplo disso mesmo.

Marcelo não é assim. O atual PR não irá combater politicamente António Costa em campo aberto. Vai certamente aumentar a sua ação fiscalizadora, vai continuar a exigir que o Governo resolva os problemas dos portugueses e vai ser mais interventivo.

Mas não acredito que o faça de forma tão despudorada com a de Mário Soares — que para combater o cavaquismo, ultrapassou todas as linhas vermelhas que a Constituição impunha e impõe à ação do Presidente da República. Soares conspirou, combateu e quis efetivamente destruir o cavaquismo.

Que os socialistas puxem pela memória e se recordem dos acontecimentos entre 1991 e 1995 antes de começarem a apontar o dedo a Marcelo. Um bocadinho mais de vergonha na cara não lhes faria mal.