1 Na semana em que a Assembleia da República é formalmente dissolvida — e o suposto recato do primeiro-ministro passará a ser finalmente cumprido (será mesmo?) — parece-me um bom momento para avaliar o legado destes oito anos da governação de António Costa.

Começo por dizer algo pouco surpreendente para quem lê esta coluna com regularidade: a minha avaliação não é positiva. Basta ler a primeira parte de um artigo especial de Aníbal Cavaco Silva para o Observador sobre o legado dos seus governos para facilmente percebermos o que significa deixar obra. Os três governos de António Costa ao pé dos três executivos de Cavaco Silva são precisamente a antítese de conceitos como “legado” e “obra.” São uma quase mão-cheia de nada.

Que mudanças estruturais no modelo económico, na saúde, na educação ou na segurança social fez António Costa? Que revolução nas acessibilidades promoveu o PS ao fim de oito anos consecutivos a governar — sem contar com os seis de José Sócrates? Além dos sucessivos aumentos do salário mínimo, a população portuguesa em geral tem hoje mais poder de compra do que tinha em 2016?

2 Todas as respostas são negativas e, em relação à última pergunta, só em 2022 é que voltamos a ter um poder de compra ligeiramente acima (78,7% da média europeia) do de 2016 (77,1% face à média europeia), sendo certo que a Lituânia e a Polónia ultrapassaram Portugal nesse indicador durante o consulado Costa e países como a Hungria, a Roménia, a Croácia ou a Letónia têm tido crescimentos muito mais significativos e estão a aproximar-se perigosamente de Portugal.

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Os executivos de António Costa até comparam mal com as reformas imprimidas pelos dois governos de Sócrates em áreas como a energia — com um apoio polémico à produção de energia eólica mas que deu resultados a longo prazo —, as infraestruturas (iniciou-se o investimento em fibra ótica, por exemplo) e várias alterações relevantes, como a introdução do inglês nas escolas desde o 1.º ano ou a criação de apoios sociais que se vieram a revelar relevantes como o complemento social de idosos.

Em certa medida, o costismo tem semelhanças com o guterrismo (uma ironia história por António Costa ser oriundo do sampaísmo) por representar uma oportunidade claramente perdida. Apesar dos números de crescimento económico dos seis anos dos dois governos de António Guterres serem significativos (com uma média anual acima dos 3% do PIB), o PS não conseguiu continuar entre 1996 e 2000 o ímpeto reformista cavaquista de 1985 a 1995 , tal como António Costa não soube ter uma visão do país a longo prazo que aproveitasse o ‘arrumar de casa’ orçamental feito pelo Governo de Passos Coelho.

3 Não há dúvida de que o grande legado da governação de António Costa é o controlo da dívida pública — aqui sim, continuando a estratégia de controlo orçamental iniciado por Passos Coelho. Podemos criticar — e muitos economistas criticam — que tal foi conseguido apenas com fortes restrições ao investimento público e com excedentes orçamentais que também derivam muito do aumento da carga fiscal.

Por exemplo, durante uma boa parte do costismo, o investimento público chegou a ser inferior à gestão de Passos Coelho durante os anos da troika.

Mas não podemos ignorar que António Costa deverá conseguir (deverá por que neste momento é apenas uma projeção) repor a dívida pública abaixo dos 100% do PIB no final de 2023 — um valor que não atingíamos desde 2009, depois da dívida ter disparado nos tempos de Sócrates de 72,2% do PIB em 2005 para 114,4% em 2011. Com o empréstimo da troika, e a queda do PIB, a dívida pública continuou a crescer até aos 132,9% em 2014.

Ainda teremos de esperar alguns meses para confirmar esse dado mas há uma descida estrutural da dívida que beneficia o Estado — que vai pagando menos serviço de dívida e vai melhorando o seu rating para fazer baixar os juros — e, por arrasto, toda a economia nacional.

Apesar de todos os temores (alguns corretos), o aumento do Salário Mínimo Nacional (SMN) de 505 euros em 2015 para 820 euros em 2024 (um aumento de cerca de 60%) é algo igualmente positivo. É verdade que os ganhos de produtividade, como expliquei aqui, não acompanharam a subida do salário nominal, mas a medida beneficiou mais de 830 mil pessoas.

O drama é que cada vez mais pessoas recebem o SMN (mais de 183 mil trabalhadores no segundo trimestre de 2023 face a 2015), o que representam mais de 20% dos trabalhadores portugueses — um dado relativo que tem vindo a diminuir devido ao aumento do emprego.

E drama porque quando o SMN é o único salário que sobe de forma significativa, tal atesta o fraco dinamismo económico e reduzidos ganhos de produtividade.

4 Dito isto, estes oito anos de António Costa pouco mais têm para mostrar, como socialistas afastados da vida política nacional reconhecem. Temos um país pouco mais do que estagnado, uma classe média afogada em impostos e sem perspetivas reais de um crescimento sustentado do poder de compra e os jovens mais qualificados a saírem do país.

É extraordinário como passamos de uma narrativa em que um primeiro-ministro (Passos Coelho) ‘obrigava’ os portugueses a emigrar (os menos qualificados), para uma emigração por “livre espontânea vontade dos jovens”, como o socialista João Torres gosta de dizer. As narrativas criativas dos socialistas são inesgotáveis.

Na Educação e na Saúde, duas das áreas que mais preocupam os portugueses na hora de analisar o rumo do país para decidirem o seu voto, a herança de António Costa é toda ela negativa. Ninguém no seu perfeito juízo pode dizer que estamos melhor nestas duas áreas do que estávamos em 2015 — um ano após a saída limpa do ajustamento.

Nas duas áreas, o PS de António Costa apostou numa radicalização ideológica, terminando com a boa cooperação que existia com o setor privado. Sejam os acordos de associação com as escolas privadas, sejam as parcerias público-privadas para a construção e/ou a gestão de hospitais, ambos eram bons exemplos de investimento que levou a melhores serviços públicos para cidadãos — sendo que muitos dos beneficiários eram pessoas com dificuldades económicas.

Pelo meio, a conhecida má gestão pública de recursos humanos agravou-se nestes últimos oito anos, não substituindo atempadamente quem se vai reformar e não alocando funcionários excedentários a serviços onde são necessários. Isto já para não falar da questão salarial no setor público, com cada vez mais dificuldade em captar recursos humanos com qualidade.

Resultado: as escolas não têm professores e os hospitais não têm médicos, enfermeiros ou auxiliares.

5 Em dezembro de 2023, havia ainda pelo menos três mil alunos sem professor em pelo menos numa disciplina. E isto repete-se todos os anos desde há muito, sem que se tenha encontrado uma solução desde 2015. Pelo contrário, o problema agravou-se. Não é por acaso, aliás, que os resultados do PISA de 2022 foram os piores desde 2006, como explica aqui em pormenor o Alexandre Homem Cristo.

Nos hospitais, o descalabro não é menor. Um SNS inoperante em que continua a existir problemas básicos (como fazer escalas), urgências hospitalares que há anos que fecham constantemente e com regularidade e uma rede de cuidados primários que continua deficitária e sem assegurar que todos os portugueses tenham um médico de família, como prometia António Costa em 2016 para… 2017.

“2017 é, de uma vez por todas, o ano em que todos os portugueses terão um médico de família atribuído”, jurava Costa em setembro de 2016. Ora, em dezembro de 2023 ainda existiam 1,7 milhões de portugueses sem um médico de família. Um falhanço monumental!

E todos estes ‘sucessos’ foram alcançados apesar da dotação orçamental ter aumentado “40% desde 2015” para a soma astronómica de 13 mil milhões de euros. A gestão socialista da Saúde é mesmo um caso de estudo sobre como não gastar dinheiro público.

Na Segurança Social, outra área fundamental, continuamos sem reformar de forma estrutural o nosso sistema de pensões, apesar de todos os alertas que vão chegando sobre os tremendos riscos da viabilidade da segurança social e das perdas brutais de rendimento das pensões da minha geração (que está hoje a entrar na meia-idade) e das gerações mais novas.

E continuamos sem reformar porque o PS tornou-se num partido ultra-conservador nesta matéria para defender aquele que, juntamente com os funcionários públicos, passaram a ser o seu eleitorado core: os pensionistas.

6 A promiscuidade entre o poder político e o poder económico foi algo que também marcou este consulado de António Costa. A forma como o Executivo cai por Costa atirar a toalha ao chão e anunciar a sua demissão ao país no dia 7 de novembro de 2023 — e independentemente das eventuais questões criminais — é exemplar dessa mesma promiscuidade.

António Costa fez muita questão desde o início do seu mandato em deixar claro tinha uma visão muito diferente de Passos Coelho sobre qual o papel do Estado numa economia aberta e de mercado livre. Uma visão dirigista da economia, no sentido do Governo não ser um ator neutro e ter uma visão clara sobre como determinados mercados devem desenvolver-se e quem devem ser os respetivos players.

Basta recordar como Costa arrasou com a Altice em julho de 2017 e se pronunciou sobre a gestão de uma empresa privada em pleno Parlamento — dizendo mesmo que não era cliente da operadora Meo.

Ou a forma novamente caceteira como atacou a empresa nacional Galp — a qual chegou a ameaçar, no meio de um comício do PS, com uma “lição exemplar” por fechar a refinaria de Matosinhos — e, como represália, elogiou a espanhola Repsol.

São só dois exemplos mas há muitos mais.

O ponto é que essa ânsia de criticar de forma autoritária a gestão de empresas privadas e de querer influenciar grandes negócios pode ser avaliada em conjunto com a revelação que fiz em 2022 no meu livro “O Governador” sobre a pressão do primeiro-ministro sobre o governador Carlos Costa para não retirar Isabel dos Santos da administração do banco BIC Portugal. E deve ser analisada em conjunto com a informalidade da relação que António Costa sempre quis ter com o seu conselheiro especial Diogo Lacerda Machado.

Tudo junto só pode levar à conclusão de que existia um risco real de tudo desaguar numa Operação Influencer. Simplesmente ninguém à volta do líder do PS — como é habitual em Portugal, ninguém quer chatear o chefe — quis ver o óbvio.

É por tudo isto que tenho a clara convicção de que António Costa, ao contrário de Pedro Passos Coelho, nunca conseguiria (e muito provavelmente não quereria) dizer “não” a pedidos como aquele que Ricardo Salgado fez a Passos para usar dinheiros públicos para salvar o Grupo Espírito Santo.

E isso, quer queiramos, quer não queiramos, faz muita diferença.

7Há muito boa gente no PS, nomeadamente neste novo PS de Pedro Nuno Santos, que tem plena consciência disso mesmo. Aliás, há mesmo uma guerra surda que existe nos bastidores dos socialistas que tem este legado de António Costa como pano de fundo.

É verdade que o discurso oficial — e que a comunicação social tem relatado — é a de que Pedro Nuno Santo e Costa estão a remar para o mesmo lado e que o PS está todo com o primeiro-ministro demissionário.

A realidade, contudo, é um pouco mais complexa do que essa. Além das relações do atual secretário-geral do PS com Costa terem esfriado há muito tempo, Pedro Nuno Santos tem plena consciência de que tem que fazer a Costa aquilo que este fez a José Sócrates.

Ou seja, Costa tem de “lutar pelo que acredita ser a sua verdade” — palavras do ex-líder do PS sobre Sócrates a 31 de dezembro de 2014 — mas sem usar o escudo do PS para se proteger da Justiça.

Isto nada tem a ver com uma comparação direta entre os casos judiciais de José Sócrates e de António Costa — que são, neste momento, muito diferentes em todas as suas vertentes — mas sim com uma necessidade política de Pedro Nuno Santos de não deixar criar uma ideia de liderança bicéfala na opinião pública.

Mais: há alguns socialistas moderados e influentes que apoiaram Nuno Santos para cortar a direito com a tralha costista e criar um novo rumo para o PS. Não só têm um candidato presidencial, como um cabeça de lista para as europeias para impedir que António Costa seja escolhido para qualquer uma dessas lutas eleitorais.

Obviamente que nenhum desses objetivos é garantido — e os mesmos não serão claros publicamente até às eleições de 10 março.

Contudo, uma eventual derrota do PS nas legislativas ou a possibilidade de uma maioria parlamentar de direita se materializar e impedir que os socialistas formem governo — invertendo-se assim as posições de 2015 —, serão um acelerador dessa estratégia e de uma responsabilização política de António Costa por parte da liderança de Pedro Nuno Santos.

Uma coisa é certa: António Costa não se calou um único dia desde o dia 7 de novembro de 2023 — para alegadamente mostrar a sua obra — e, tal como fez questão de impor a sua presença a Pedro Nuno Santos no último dia do Congresso do PS, duvido muito que se fique apenas por uma única presença na campanha eleitoral e depois se remeta ao silêncio total e absoluto até ao dia 10 de março. Ou muito me engano ou ainda vamos ver Costa em destaque na campanha.

O discípulo de Maquiavel chamado António Costa está em modo de sobrevivência política e não vai ficar quieto.