1 Alexandrina vive em Évora, é reformada da fábrica Nacional com 40 anos de descontos, recebe pouco mais de 400 euros de pensão e paga 350 euros de renda de casa. Na última campanha eleitoral, como ficou registado num dos liveblogs do Observador, a comitiva do PS passou por Alexandrina, que foi pedir a António Costa para lhe aumentar a pensão. Segundo o relato da jornalista Rita Tavares, o cabeça de lista por aquele distrito, Capoulas dos Santos, respondeu a Alexandrina como quem debate nas trincheiras de um programa televisivo: «Outros cortaram». Mas o presidente da distrital socialista, mais astuto, temeu que Alexandrina se voltasse contra o PS que governava há já seis anos e foi inverter a narrativa, dizendo que se o Orçamento do Estado tivesse sido aprovado Alexandrina já teria mais dez euros na pensão. E Alexandrina suspirou de alívio: «É isso.»

O episódio falará por si e em todas as suas dimensões. Mas parece fácil, ainda que redutor, perceber como ganhou o PS uma maioria absoluta depois de seis anos de Governo: as forças à esquerda eram as culpadas do impasse nas suas vidas, e as forças à direita não estavam a falar para uma larga fatia da população. Muitas outras razões haverá que expliquem o resultado eleitoral, naturalmente. É verdade, como detalhou aqui Vítor Bento, que a camada da sociedade que depende directamente do Estado é cada vez maior. Mas isso não explica, por si só, que o PS tenha passado, como às vezes me parece, a conquistar o direito natural a governar perpetuamente. A direita, mesmo tirando o Chega da equação, recuperou eleitorado, é verdade. Mas quando li aqueles diálogos com Alexandrina compreendi mais claramente por que razão a esquerda, em geringonça ou só com o PS, voltaria a ter maioria no Parlamento.

Não sei se a direita conhece bem ou mal o País que tem à sua frente, mas resolveu, com a fragmentação partidária, ocupar-se exclusivamente dos seus nichos eleitorais. E a sua soma, independentemente dos sucessos partidários singulares, não permite oferecer uma vitória ao espaço democrático, reformador e liberal à direita do PS. A responsabilidade não advém do crescimento dos reformados, pensionistas, funcionários públicos, beneficiários de prestações sociais de todas as espécies. O País é envelhecido e pobre, é natural que dependa do Estado se essa for a única resposta que lhe dão; é utópico pensar que se ganham eleições com base numa ideia do que os portugueses deviam ser e não do que são; e é abusador considerar que qualquer pessoa, só pelo facto de ser reformado ou funcionário público, está de braços abertos ao PS.

Facto é que os partidos do centro-direita se esqueceram de quem é o eleitorado capaz de lhe devolver a capacidade de governar. Esse é eleitorado é, naturalmente, aquele que lhe deu o voto no dia 30 de Janeiro. Mas é também o Portugal envelhecido, reformado, pensionista, empregado na função pública, beneficiário de prestações sociais. Não falo aqui de dois eleitorados diferentes: falo de um País por inteiro, de 10 milhões de pessoas que ainda têm um chão comum, ambições e expectativas diferentes, mas igual necessidade de serem atendidos (mesmo sabendo que não é possível assegurar a satisfação política da totalidade das almas portuguesas), e para o qual a direita perdeu a capacidade de falar. Muitos se têm entretido recentemente a sugerir que caminhos deve o centro-direita, com o PSD à cabeça, seguir. Insistem na filosofia política, nas definições ideológicas, na criação de um programa e de uma mensagem para cativar o voto da direita. Insiste-se na política de nicho: não aprenderam nada.

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Se o que temos visto nas últimas semanas for o espelho do que se passará nos próximos quatro anos, é certo que o resultado se repetirá. Enquanto se ouve falar de inflação, aumento de preços e dificuldades por todos os cantos do quotidiano, o País mediático e politizado resolveu encher-se de estupidez e discutir de forma calorosa um tema que nos desinteressa largamente, isto é, a votação parlamentar que ditará as vice-presidências da Assembleia da República. Um fogacho político que, em circunstâncias normais, se resumiria a isto: os quatro maiores partidos devem indicar nomes para o lugar, os deputados escolhem quem lhes apetecer e se algum for recusado o problema é dele em concreto, que perde o acesso a regalias, melhor ordenado e motorista; e o resto das pessoas, ocupadas a trabalhar, a estudar, a cuidar de arranjar um emprego ou de manter o que têm, de educar os filhos e de tratar dos seus velhos, prosseguiria a sua vida, indiferente (e bem) ao assunto. Talvez por razões relacionadas com o espectáculo permanente em que vivemos, as televisões e a imprensa resolveram fazer a vontade ao Chega e dar atenção manifestamente exagerada a uma votação parlamentar que não acrescenta nada à vida dos portugueses. E os partidos da direita optaram por fazer o mesmo, tomando para si dores que não são suas, com o único propósito de não ficar de fora do combate à esquerda. Tem tudo para correr bem.

2 Portugal vive, à semelhança do resto do mundo, tempos de mudança e agitação social, fraco e ameaçado crescimento económico, crises disto e daquilo, e corre riscos de ver a sua democracia liberal ameaçada por movimentos extremistas à esquerda e à direita, dentro e fora dos partidos tradicionais, que, sobrepondo a ideologia ao diálogo e o combate cultural à necessária disputa de propostas políticas que tenham potencial impacto positivo na vida de todos nós, corroem os princípios de moderação essenciais a qualquer regime democrático. Temos sofrido, no nosso caso concreto, demonstrações inequívocas da degradação dos serviços públicos, da independência das nossas instituições, do poder regulador da democracia e da actividade política. Conhecemos há várias décadas a estagnação económica e a paralisação do elevador social. Os partidos do chamado arco da governação encontram-se exclusivamente focados na manutenção ou conquista do poder, um com mais sucesso do que o outro, e ambos secundarizando uma acção governativa que transforme Portugal.

É gradualmente notória a incapacidade que os partidos tradicionais revelam em reformar-se, em oferecer dignidade ao seu próprio papel de actuação política em função das necessidades das pessoas e do País, em procurar consensos nas questões estruturais, em firmar acordos que projectem o País para as próximas décadas, estabilizando as políticas públicas e em oferecer expectativas e oportunidades de longo prazo aos seus cidadãos. O entrincheiramento político a que assistimos, encarado até como necessário, não oferece aos portugueses a satisfação das suas necessidades.

Há duas semanas falei aqui da eventual implosão dos partidos da direita tradicional como crucial para unir o centro reformador e liberal. É, julgo, tempo de federar os despojos partidários, de arregimentar os melhores que ainda neles subsistem e os que se foram rendendo ao abstencionismo partidário, e edificar de novo um programa de reforma política, económica e social que assente no princípio de que o País precisa de uma alternativa viável, através de uma fórmula orgânica de grande amplitude ideológica.

Uma grande aliança popular que parta da consciência de que a sociedade do futuro pode ser feita de liberdade, de igualdade e de bem-estar, uma vez que não estamos destinados a fossos ideológicos, a combates culturais permanentes ou à pobreza progressiva.

Uma grande federação que agregue as várias sensibilidades políticas que convivem ainda no centro moderado, reformista e não socialista: social-democratas, liberais, democratas-cristãos, progressistas, conservadores, ecologistas moderados, crentes, não crentes, enfim, todos aqueles que, apesar das suas diferenças, entendem que o diálogo, o consenso e a coragem para reformar um País, tornando-o mais justo e, ao mesmo tempo, fomentando uma sociedade mais robusta e livre, são as armas mais importantes de uma democracia. Não duvido de que ainda é possível definir estratégias de longo prazo, lutar por eixos essenciais para o desenvolvimento económico sustentável, defender soluções pragmáticas que respondam às necessidades quotidianas de todos, em função das suas diferenças, privilegiando o possível bem comum, mas atendendo às necessidades das minorias; assegurando as liberdades cívicas e económicas; assumindo a iniciativa privada como motor da economia; pugnando pela igualdade, por uma agenda social, pela solidariedade e pela sustentabilidade ambiental; exigindo políticas públicas norteadas pela transparência e que tragam mecanismos funcionais de fiscalização.

E sou ingénuo o suficiente para acreditar numa grande federação de personalismo, assegurando o exercício por todas as pessoas da sua liberdade; de defesa da democracia, pugnando pela sua sobrevivência, pelo seu aprofundamento, pela sua estabilidade e dignificação; de liberdade como conceito pluralista de vida, de sociedade, de cultura; de humanismo, manifestando fraternidade e solidariedade pelos outros, pelos que sofrem, pelos marginalizados, pelos que pensam de forma diferente; de progressismo numa sociedade dinâmica, em combate por um País melhor, mais justo e mais fraterno; de igualdade, defendendo a economia de mercado aberto, mas socialmente equilibrada, que chame as grandes empresas às suas responsabilidades sociais, que garanta justiça social e oportunidades a todos, pugnando pelo feminismo e pelo fortalecimento do papel da mulher e das minorias étnicas, e pela conciliação da vida profissional com a vida familiar, independentemente do modelo de família escolhido por cada um; de todas as classes, acreditando que é através do diálogo e da concertação que se compatibilizam posições diferentes em cada realidade empresarial e social em concreto, e não através de combates espúrios entre grupos identitários ou classes sociais; de europeísmo, defendendo as nações e a Europa dos povos, pugnando por uma União que não seja colectivista nem desreguladora, que não seja autoritária nem indiferente às necessidades dos cidadãos, mas que defenda os direitos humanos e confira maior democraticidade às suas próprias instituições; de ambientalismo, pugnando por uma sociedade que viva de forma mais harmoniosa com a natureza, respeitando os seus ciclos, compatibilizando as necessidades materiais do ser humano com o imperativo de deixar às gerações futuras um mundo melhor do que aquele que recebemos e assegurando um novo modelo de cidade adaptada às necessidades de bem-estar dos cidadãos. E, a partir deste território comum, construa um quadro de políticas públicas concretas que possam ser compreendidas pelas pessoas, que responda ao País que somos, desenhando o que deseja que o País venha a ser, procurando não deixar ninguém para trás.

Perdoe-me o leitor, que temo ter-me entusiasmado com a ideia. Recomendo, pois, que ignore o que aqui escrevi: o PSD está, ao que parece, prestes a decidir se prefere Luís Montenegro, Ribau Esteves, Miguel Pinto Luz, ou um outro graduado em presidenciável, a contar espingardas nas distritais, a reunir apoios para aqui e para ali, a ignorar que se encontra em progressivo estado de desagregação. Não nos afastemos, pois, destas grandes questões.