Há temas que perduram tanto no tempo (entre adiamentos, indecisões e soluções provisórias) que é fácil perder a noção de quando se cruzou a linha do inaceitável e se entrou no campo da indignidade. A remoção do amianto dos edifícios públicos (particularmente em escolas), tratando-se de uma substância comprovadamente cancerígena, é um desses temas marcados por adiamentos inexplicáveis e uma opacidade permanente das autoridades públicas — seja na partilha de informação ou na prestação de contas. Está no momento de dizer que já chega.

Na legislação portuguesa, esta história começa no longínquo ano de 2002. Através da resolução 32/2002 da Assembleia da República (aprovada por unanimidade), solicitou-se ao Governo que fizesse a “inventariação” dos edifícios que tivessem placas de fibrocimento (amianto) e que elaborasse um plano hierarquizado de remoção dessas placas. O processo ficou esquecido no papel e permaneceu indiferente à transposição (em 2005) de uma directiva europeia, que limitou a utilização desses materiais. Sim, houve levantamentos da existência de amianto nas escolas, por exemplo em 2007, mas nem sempre conclusivos, de modo que a acção tardou sempre demasiado. Foi necessário aguardar até 2011 para que as intenções expressas durante anos passassem finalmente para a lei nacional. Assim, 9 anos depois, a lei 2/2011 foi recebida como uma espécie de virar de página: seria, a partir de então, muito mais difícil para as autoridades públicas manter o assunto adormecido. Por um lado, assim foi. Por outro, no final de 2019, parece que ainda há demasiado por fazer.

Em 2013, após uma nova inventariação levada a cabo em 2012, divulgou-se a lista de escolas que seriam alvo de intervenção, numa primeira fase de prioridade elevada. No total, entre 2013 e 2014, as placas de fibrocimento danificadas terão sido removidas em 300 escolas públicas — remoção parcial ou total, na medida em que, enquanto não estiverem deterioradas, as placas de fibrocimento não soltam as partículas de amianto e não representam uma ameaça. Mas não só já havia mais escolas a carecer de intervenção (menos urgente) como a falta de manutenção sistemática levou desde então à deterioração dos materiais, pelo que, nos últimos 5 anos, novas prioridades surgiram. De acordo com o Ministério da Educação (em Fevereiro 2019), terá havido intervenção em mais 150 escolas desde 2016, sendo que a meta é chegar às 192 intervenções até 2020 — sendo estas as consideradas de intervenção prioritária.

Esta sequência de intervenções mostra que, apesar de tudo, algo está a ser feito nas escolas públicas. A questão fundamental é perceber-se se o que está a ser feito é suficiente e se o esforço do governo é proporcional à urgência que o tema justifica — na Educação e nas outras tutelas. E, perante a informação existente, a única resposta possível é ‘não’.

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Repare-se nos dados apresentados pelo ministério do Ambiente, em 2016. São de uma tal ordem de grandeza que não deixam dúvidas da dimensão do desafio: 2892 edifícios do Estado com amianto, dos quais 1180 são tutelados pelo ministério da Educação. Em Dezembro de 2018, concluídos os dois anos (2017 e 2018) ao longo dos quais as intervenções aconteceriam, o balanço divulgado é lastimável: de um universo de 1400 edifícios (que exclui a Educação), somente 90 haviam sido alvo de intervenção — muito menos do que os 252 edifícios seleccionados para intervenção a curto prazo, sendo que os mais urgentes (prioridade máxima) eram 76 edifícios e só 20 foram efectivamente intervencionados. As contas pioram: estava previsto um orçamento de 46 milhões de euros para a intervenção nestes edifícios, mas passados dois anos e somente 90 intervenções, o valor executado foi de 625 mil euros (ligeiramente acima do 1% do orçamentado).

Estes valores mostram como a remoção do amianto não está a ser uma prioridade do actual governo. E os números mostram também que, na Educação, apesar de esforços mais notórios, se continua longíssimo de cobrir as necessidades de intervenção face à inventariação de 1180 edifícios escolares onde as placas de fibrocimento representam (ou representarão) um risco grave de saúde pública (neste caso, envolvendo também crianças). Não é de estranhar que, por tudo isso, este seja um tema particularmente sensível e no qual as emoções tomam conta da comunidade escolar — com eventuais excessos. Mas isso não impede que se assinale o óbvio: as respostas que o governo tem dado já não servem.

Confrontado com o regresso deste tema ao debate público, o ministro da Educação procurou desdramatizar e identificou um certo alarmismo social na forma como a questão tem sido recentemente abordada. Esta resposta é largamente insuficiente: o governo não tem cumprido as suas próprias metas, há intervenções prioritárias que são adiadas em detrimento de outras menos prioritárias, o esforço financeiro na remoção do amianto é insipiente e a informação disponível é opaca, escassa e gerida politicamente, impedindo os cidadãos de escrutinar realmente a acção do governo. Existe alarmismo social? Claro que sim, mas fruto da desconfiança que se instalou — ninguém leva a sério os contraditórios comunicados de imprensa ministeriais. Até porque, na verdade, já nem o mais básico é tido como um dado certo: depois do levantamento de há dois anos, parece que o número de referência no ministério do Ambiente subiu para 3739 edifícios contaminados. Após 17 anos de recuos e (alguns) avanços, tornou-se inaceitável tudo o que agora não seja transparência na informação e máxima prioridade política na resolução.