1 O empenho com que há dias acolhi o convite para participar num documentário da RTP sobre Conceição Monteiro devia ter-me posto alerta: tanto agrado meu? Despachando logo um “sim, claro!” que não deixava margem para dúvidas?

E de repente, percebi: era a memória. Uma impressiva, gratificante memória que respondia por mim à jornalista Alberta Marques Fernandes, autora do documentário. A memória adiantara-se, substituindo-me no meu “sim”.

2 Às vezes penso que podia sentar-me numa cadeira e começar a contar o 25 de Abril desde o principio. Privilégio maior: podia contá-lo da primeira fila, vi tudo, deitei fora algumas coisas (e pessoas) e retive o resto que foi imensíssimo. Conceição Monteiro faz parte dessa história, tem lugar cativo no PPD (depois PSD). E era aí, ao PSD, onde queria chegar. Com a memória. Chegar ao que vi o partido fazer em 1979: tutelado pelos militares, cercado pela esquerda, o Conselho da Revolução, o PC, uma media hostil e um chão democrático tão adulterado que a direita não tinha nele direito de cidade, vi o PSD agir com “anima” e intervir a favor de Portugal.

“Anima” quer dizer alma em latim, e não era senão desse sopro de alma e animo que então se tratava. O exercício contagiou metade dos portugueses. Acreditaram. Sentiram-se convocados: havia um líder forte, convicções fortes, rumo. Estava em marcha uma mudança predisposta à ruptura. Achava-se que uma e outra eram impossíveis, Francisco Sá Carneiro não achava: queria-as indispensáveis porque as sabia indispensáveis. Assim foi, com “anima”.

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Durante várias semanas – na preparação da campanha da AD para as legislativas de 1979; a seguir, na pré campanha, e finalmente na própria campanha eleitoral, Francisco Sá Carneiro, convenceu uma pátria que não queria senão isso mesmo: juntar-se a alguém que convidava o país a romper com um cerco político-militar e começar outra vida.

A memória, outra vez: vi Sá Carneiro dar a volta a uma circunstância “fechada”, duríssima, com milhares de portugueses atrás dele. Dito assim parece quase prosaico, de tão simples, como vestir um casaco ou pôr um carro a andar. Não foi e ele não o fez sozinho. Também lá estavam o CDS de Freitas do Amaral, o PPM de Gonçalo Ribeiro Telles, os “Reformadores” de António Barreto, e dos saudosos Medeiros Ferreira e Francisco Sousa Tavares. Brigada pesada mas a “anima” era de Francisco Sá Carneiro. Anima com assinatura não poucas vezes controversa, tumultuosa, excessiva. Felizmente: dos fracos nunca história alguma jamais rezou. A AD ganhou as legislativas de 1979 e voltou a ganhá-las nas eleições seguintes.

Infelizmente, os herdeiros não souberam estar a altura do que se iniciara. Talvez não tenham percebido.

3 Será porventura anacrónico mas seguramente difícil relembrar isto tanto tempo depois e já num outro século. Onde a “anima” perdeu o lugar e onde os critérios, instrumentos e meios aplicados na política são parentes longínquos dos que testemunhei serem os escolhidos há décadas por alguns políticos. Quem se convence a levar a sério – por exemplo – substantivos como “ruptura” “mudança”, “reforma”, se nenhum protagonista político parece hoje alcançar a indispensabilidade de nenhum deles? Tais substantivos talharam como as maioneses mal feitas, a exigência está em extinção, o critério, em desuso. E se a esta degradação da qualidade humana, cívica e política, juntarmos o ar deste tempo – roedor aplicado dos pilares da sociedade e dos valores civilizacionais que a regem – resta-nos rezar ou fugir. (Não haverá nenhum político com vontade de nos apear desta espécie de comboio fantasma onde por entre os restos e espectros daquilo que constituía os nossos dias se coabita hoje e com jubilo com os novos dictats das minorias, um novo pensamento único, os novos ditadores e não só do pensamento, um feroz mundo novo a ser adubado? Ninguém responde a esta crucial chamada?)

Que líder se abalança hoje a separar o joio que cresce por toda a parte, do trigo que apesar de tudo ainda se encontra no país e, ele sim, mereceria adubo? O que se virmos bem é outra forma de evocar a “ anima” e o animo, a mesma que testemunhei em 1979, posta ao serviço da pátria e do interesse nacional por Sá Carneiro.

Nada disto, note-se, me parece ser susceptível de ser confundido com o vulgar “chorar sobre leites derramados” (só com má fé). Não choro. Lembro e comparo: achando apesar de tudo que nem o nefasto ar do tempo, a pandemia, a guerra, a má qualidade política explicam tudo sobre a espantosa demissão em que Portugal esmorece e empobrece.

4 Voltando à memória e ao empolgamento de alguns grandes “momentos” da história portuguesa recente, não esqueço outros onde a anima inverteu o aparentemente “invertível”. Lembro milhões de portugueses em 1975, em gigantescas e interclassistas manchas humanas atrás de Mário Soares. Sem sombra de hesitação e postos em sentido: não era Soares o seu general, desassombrado e convicto? O país ardia em múltiplos fogos políticos postos por revolucionários — uns de pacotilha, outros sabiam bem o que andavam a fazer. O perigo era real, os líderes políticos não dormiam em casa, havia a ameaça de um cerco a Lisboa, a única autoridade em curso durante longos meses foi a revolucionária, os incêndios não paravam de ser ateados. Mas Soares lá estava. Foram trabalhos de Hércules para que a história não acabasse mal.

Sim, Soares também não fez tudo sozinho. Com ele e atrás dele estiveram os militares moderados, os partidos democráticos, a Igreja, o povo, passando pelas mocas de Rio Maior – mais inofensivas em todo o caso do que os fuzilamentos simulados em que se entretinha então um militar de apelido Corvacho numa prisão onde nenhum detido tinha culpa formada. Mas a alma e o ânimo – e a coragem – partiram de Soares, eram propriedade sua. Os portugueses perceberam muito bem que há homens cuja anima, em certos momentos, é o ex-libris desses mesmos momentos. Como o de tornar uma revolução num estado de direito. Uma inesquecível jornada.

5 Começou a dar nas vistas ao leme de um governo minoritário, no final de1985. Liderava. Falava em reformas. Tinha fôlego e anima e logo causou estranheza: não vinha da bolha do sistema, era um outsider, interrompia o alinhamento dos consentidos. Um estorvo.

Mas quando meses depois Cavaco Silva obteve a primeira maioria absoluta da história “do 25 de Abril”, metade do país rejubilou. Eu estava lá: lembro-me dum momento de indefinível entusiasmo, como se daí em diante tudo passasse a ser possível. A outra metade vociferou: como é que ele se atrevera? (sobretudo: que povo era aquele que votara “assim”?) Também aqui a resposta não difere: votara numa liderança cuja anima convencera, mobilizara, transformara. Seguiram-se outras três maiorias absolutas que ainda hoje doem tanto à esquerda que – tal como os Bourbons – ela não perdoa, nem esquece.

6 Falta o momento Passos Coelho, claro, mas esse fez tudo sozinho ou quase, quase. A anima foi solitária antes do mais. Um caso. A segunda vitoria eleitoral, em 2015, foi o melhor sinal de como milhares de portugueses perceberam bem isso. “Anima” num período de pesados sacrifícios impostos por uma trágica irresponsabilidade da qual Pedro Passos Coelho era totalmente incólume. Uma grande história toda por contar. Sei-a de cor. A que se conta, além de um insulto, é uma pura adulteração da política, do passado recente, da própria história país. Mereceria livro. Talvez chegue.