Os políticos caracterizam-se pela sua personalidade e pelos seus feitos. O que é curioso desde o início em António Costa é o ter marcado a diferença na forma como chegou à liderança do PS e à chefia do governo. Na política é fácil confundir lealdade com inflexibilidade, mas é raro que a desleadade seja tão premiada como sucedeu com António Costa. Aliás, é curioso que a desleadade para com António José Seguro ficasse justificada com a originalidade de 2015. Foi o mesmo argumento que serviu para António Costa não aceitar o ‘ganhar por poucochinho’ que o levou a não admitir a sua demissão como decorrente da derrota nas legislativas.

Estas duas jogadas políticas de António Costa mostram o quanto não se deixou limitar pelas regras não escritas da geração mais velha e surgidas na constituição de 1976. Mas Costa foi ainda mais longe: utilizou a comunicação para vender o seu produto. É verdade que contou com uma comunicação social menos crítica com o PS que para com os partidos de direita e que raramente confrontaram o primeiro-ministro com a sua falta de clareza, lacunas, incongruências e contradições. Independentemente disso, com António Costa assistimos à capacidade de alguém não mentir ao mesmo tempo que não diz a verdade. O resultado foi uma população lisonjeada pelo primeiro-ministro e que lhe responde com subordinação e pronta a cooperar.

De certa maneira António Costa lembra as tácticas de Otto von Bismarck quando este chegou ao poder na Prússia, em 1862. Bismarck percebeu que tinha de dividir para sobreviver politicamente e ser o único com acesso directo ao monarca. Tirou proveito dos conservadores e dos liberais verem no nacionalismo alemão um motor para a Prússia liderar a união da Alemanha, mas defraudou os primeiros relativamente às reformas constitucionais e os segundos com não regresso à aristocracia antiga do século XVIII. O resultado foi a divisão entre as duas facções que deixaram vago um espaço que o chanceler manobrou como quis. Mais tarde atraiu os austríacos para uma aliança na ocupação do ducado de Schleswig-Holstein, iludindo-os com uma supramacia que já não se justificava e que a geografia não permita. Por sua vez convenceu o rei da Prússia a apoiar um príncipe alemão como sucessor ao trono espanhol e, dessa forma, provocou Napoleão III a fazer exigências que assustaram os restantes estados alemães forçando-os a unirem-se debaixo de alçada de Guilherme I.

Bismarck não era de fiar. Christopher Clark, historiador australiano e professor em Cambridge, é autor de vários livros sobre a Alemanha. Em ‘O Reino de Ferro – Uma história da Prússia, Ascenção e Queda, 1600-1947”, diz sobre Bismarck que “não era um homem de princípios; a melhor maneira de o descrever é como um homem desligado dos princípios, um homem que se libertou dos apegos românticos de uma geração mais velha para praticar um novo tipo de política flexível, pragmática e emancipada de compromissos ideológicos estáticos. As emoções públicas e a opinião pública não eram autoridades a aceitar nem a seguir, mas sim forças para gerir e orientar.” Bismarck foi ainda exímio no modo como lidava com a imprensa. Premiava os jornalistas mais próximos dando-lhes acesso a informação privilegiada, o que facilitou o surgimento de uma classe próxima da autoridade em Berlim. O escrutínio tornou-se mole, dúbio e as opiniões ambíguas para, após as vitórias militares, passarem a efusivas. Acrescenta ainda Clark que Bismarck “adquiriu o seu respeito arguto pela opinião pública, não como árbitro do futuro, mas sim como parceira subordinada a lisonjear e manipular para ser cooperante.”

Mas há uma diferença crucial entre Costa e Bismarck que os coloca em patamares distintos. A bem ou a mal, Bismarck mudou a Prússia e uniu a Alemanha enquanto António Costa se limitou a parar Portugal para o acomodar aos interesses do PS, que se reduzem à sua continuidade no governo. Bismarck trabalhou para a Prússia e tornou-a na grande potência da Europa. Ainda hoje a Alemanha está aí à vista de todos. Costa pôs Portugal a trabalhar para o PS. Se alguma justificação existe para a estagnação em que nos encontramos, para a fuga para o estrangeiro de tantos portugueses que, num mundo globalizado, não têm de aceitar viver na mediocriade, se alguma explicação existe para o que vivemos hoje esta reside na necessidade de manter o PS no poder. Não existe outra. Por muito que nos custe aceitá-lo somos um país reduzido a essa insignificância. E é por não aceitarmos isto que devemos tentar entender como chegámos aqui, como permitimos que isto sucedesse, como foi possível cairmos nesta terrível armadilha em que a população trabalha para um grupo.

Apesar de tudo há aqui uma ironia avassaladora: na verdade, ao não mentir ao mesmo tempo que não diz a verdade, António Costa não existe. Nunca existiu. De tal forma não existe que, e contrariamente a Bismarck, não deixa marca, nada há, nada haverá que o recorde que não sejam as artimanhas que um jornalista mais afoito não conseguisse expor. António Costa atingiu o feito de desperdiçar a sua fantástica inteligência política num vazio que se desvanecerá tão depressa quanto a duração do seu discurso de despedida.

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