O assunto vai naturalmente morrendo. Por agora. Irá ressuscitar. Por enquanto, é preciso deixar espaço para o Homem. Comecemos pelo fim. O Homem, o Prof. Fernando Araújo, é estudioso, um competentíssimo especialista de Imuno-Hemoterapia, especialidade onde a capacidade de organização e planeamento é uma das chaves do sucesso, um ser humano excelente e eticamente irrepreensível. Tudo fará para desempenhar bem o cargo de Diretor Executivo do SNS. Se fosse comigo, tê-lo-ia convidado. Em tempos, pedi-lhe para continuar a presidir à ARS Norte. Não quis. Compreendi e não fiz leituras pessoais da recusa. Quando o 1º governo do Dr. Passos Coelho substituiu o último do Eng. José Sócrates, houve pessoas que aceitaram continuar e outras não. É a vida. Se houvesse, como deveria haver, uma carreira de administradores públicos independentes, tudo o que se prendesse com nomeações de Diretores Gerais e Presidentes de Institutos Públicos, a exemplo dos diplomatas e juízes, seria mais fácil. Não havendo, não são muitos os que continuam sempre, seja qual for o governo. Não tenham dúvida que uma das prioridades para o desenvolvimento de Portugal será a despartidarização da administração pública. O Dr. Passos Coelho percebeu isso, mas o Dr. António Costa, a esquerda em geral, prefere sempre o controlo da administração pública, das entidades reguladoras, das empresas públicas e da comunicação social. É assim.

Há uma parte da paródia em que se tornou a nomeação do 1º Diretor Executivo do SNS de que o Homem não tem culpa. Foi uma novela enfastiante, com o tédio próprio que só o governo de António Costa nos sabe oferecer, com o picante de termos sabido que a Direção fica no Porto, por proposta do indigitado, apenas por acaso residente no Porto, tal como a ERS está no Porto porque o 1º regulador também lá morava. É um critério para a fixação de sedes de organismos públicos. A chamada seleção por código postal, tão temida na saúde. Nada contra. Poderia ter sido em Freixo de Numão, porque não? Mas o que tem piada, muita graça, é ter ouvido o nosso impagável ministro da saúde explicar-nos, não tínhamos percebido, que este é mais um exemplo da vontade descentralizadora do governo. Não haverá uma alma caridosa com vontade de lhes explicar que a descentralização não se faz por estacionar agências CENTRAIS fora de Lisboa? É o cúmulo da desfaçatez. Esta agência, construída para centralizar a coordenação e gestão do SNS, passa a ser descentralizadora porque a vão meter na Avenida da Boavista. E Santarém? Não seria melhor, agora que há quem lá queira construir o aeroporto de Lisboa?

Voltemos ao princípio, o articulado do diploma que regula a orgânica da Direção Executiva (DE). Sobre a Lei de Bases e os Estatutos do SNS escreverei mais tarde.

Em termos de linguagem o Decreto-Lei n.º 61/2022 de 23 de setembro está cheio das ambiguidades habituais neste tipo de diplomas, desde logo pelo uso de termos sujeitos a interpretações diversas, tais como “articular”, “em articulação”, “sob proposta”, “coordenar”, “promover” e “apoiar”. Existe uma alergia legal a escrever que uma determinada agência “é responsável” – note-se que não no caso da definição de atribuições dos ministros –  e prefere-se quase sempre “assegurar” em vez de “garantir”.  Nada disto é tão despiciendo como possa parecer.

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Depois, insiste-se na preguiça de não republicar diplomas e manter um edifício jurídico cheio de modificações, retificações e emendas que tornam o estudo da orgânica das agências governamentais num exercício de exploração labiríntica. Este decreto cria e recria outros tantos diplomas. A tal falta de reforma global da orgânica do ministério da saúde e do SNS a que já me referi anteriormente.

Contudo há bons sinais. Passar as relações internacionais do MS para a secretaria geral foi uma boa decisão. Aproxima-as do ministério. Ao invés, manter na DGS competências, ainda que vagas, sobre prevenção terciária, mormente pela emissão de normas e linhas de orientação para lá do âmbito da saúde pública e atribuir-lhe o controlo da qualidade clínica, é persistir num erro. Tudo o que se refira a prevenção terciária e organização de rastreios (prevenção secundária) deveria ter ficado na DE. Logo, toda a parte assistencial dos programas prioritários de saúde deveria ter sido cometida à DE.

A ACSS mantém o seu lugar na contratação de pessoas – desde logo porque será este organismo que negociará as carreiras, um eufemismo para falar de salários –, na determinação de recursos estruturais, no financiamento, na contratação de serviços prestados por terceiros, na política de preços e na centralização da informação estatística (sobre este assunto a confusão continua a ser total, dado que todos têm estatísticas e cada uma de seu tom). Nada de errado em termos da concentração destas temáticas de gestão de recursos numa só agência. O que está errado é que a ACSS deveria ter ficado subordinada à DE – provavelmente até lá incluída – para que o Diretor Executivo tivesse verdadeira capacidade de intervir na governação do SNS.

As ARS ficam subordinadas em quase tudo à DE, embora ninguém se tivesse atrevido a escrever isso no diploma. Logo, vai haver potencial de conflito e a resultante inação por falta de determinação explícita de hierarquia. Erro por omissão. Como se decidiu manter o SICAD, não tendo tido a coragem de o integrar na DGS para a prevenção primária e na DE para a prevenção terciária, as funções assistenciais no âmbito das toxicodependências ficam enquistadas nas ARS. Mais outro erro.

A DE fica, no fundo é isto, com a obrigação de gerir nacionalmente os fluxos dos doentes, desejavelmente numa lógica de contínuo de cuidados – primários, hospitalares, continuados, reabilitativos e paliativos –, o que não é coisa pouca, mais as obrigações decorrentes da gestão centralizada da prestação pelas unidades do SNS. Poderá haver caminho para a generalização progressiva de um modelo de tipo “unidades locais de saúde” – concentrando todos os níveis de cuidados numa gestão única -, adaptado às características regionais e locais. Talvez haja mudança para a efetivação de fluxos através de redes que dispensem as “cunhas” de boa vontade entre colegas amigos. Neste sentido, faltou uma menção explícita sobre a gestão de transporte de doentes, bem como sobre a rede de diálise. Prioritariamente, terá de haver racionalização dos processos de clinical pathways que correspondam à eliminação, com os correspondentes ganhos de efetividade clínica, nos estrangulamentos e consequente diminuição dos tempos de espera associados.  Espera-se que a DE tenha a capacidade de repor os níveis de intervenção hospitalar, nomeadamente no que disser respeito a especialidades disponíveis, retirando especialistas de uns centros e colocando-os noutros, o que não parece claro por conflituar com as atribuições da ACSS sobre recursos humanos, mapas de vagas e alocação de internatos. Pior que tudo, voltarei a isto na análise dos estatutos do SNS, mantém-se uma enorme confusão nas várias formas e níveis de autonomia para a contratação de pessoal, nomeadamente médicos e enfermeiros, com concursos nacionais a par da possibilidade de contratações locais.

Sem que a DE tenha supremacia hierárquica sobre a ACSS no que se prende com a angariação, distribuição e manutenção de recursos – materiais e humanos – e com o financiamento, será muito mais difícil. Este é o maior erro, o que terá o custo maior, até porque o legislador teve a arte de colocar artigos potencialmente geradores de conflitos no que diz respeito à alocação de financiamento e à avaliação de qualidade que no meu entender deveria ter sido integralmente cometida à ERS, em vez de manter o princípio de termos juiz em causa própria. E há uma contradição insanável, ao nível da gestão de operações, entre a intenção de entregar os cuidados primários às autarquias e centralizá-los nesta direção executiva. Na verdade, toda esta questão da descentralização para as autarquias colide com o processo de financiamento do SNS, ainda centralmente gerido pela ACSS.

Entregar ao DE a possibilidade de propor a nomeação de gestores institucionais é uma decorrência sem impacto significativo, até porque não é certo que o conselho de ministros possa delegar a nomeação de presidentes de EPE na DE.

O INEM, apesar do seu caráter assistencial no SNS, ficou ainda autónomo. É uma escolha.

Ficou por resolver toda a confusão sobre a emissão de linhas de orientação terapêutica que se mantém entre a DGS, INFARMED e Comissões de Farmácia e Terapêutica, sendo que estas últimas deveriam ficar sob a alçada da DE.

Em termos práticos, nisto somos imbatíveis, lá se criaram mais uns Conselhos e Assembleias. Estes órgãos, de grande utilidade catártica e que nunca acrescentam valor, são indispensáveis na legislação nacional. Não poderiam faltar. E, no fundo, não percebi onde estão os ganhos de autonomia gestionária quando o SNS passa a ter uma centralização, embora parcial, de competências. Tenho sempre a impressão de que o legislador tende a ser longo a escrever e parco a esclarecer.

Para terminar, o processo de nomeação dos diretores não será por concurso. Já se sabia. Aqui, tenho de ser sério e declarar a minha concordância. Nunca fui adepto do modelo vigente da CRESAP e num País onde não há, infelizmente, uma carreia sólida de administração pública é preferível ter o governo a escolher alguém potencialmente competente do que sujeitar os decisores à penosa avaliação de um especialista em águas residuais de uma câmara municipal que resolva concorrer a um lugar de direção no INEM.

Enfim, a montanha não pariu um murganho, nem um rato. Temos de ter a retidão de reconhecer que o parto foi de um porquinho da Índia, apesar de tudo um roedor de dimensões mais apreciáveis.

P.S. – A avaliar pelas notícias, as urgências de obstetrícia estão estabilizadas e todas a funcionar em pleno. Já não falta nada.