A frase do Professor Luís Aguiar-Conraria diz quase tudo. “Daí que esta escolha do primeiro-ministro e do ministro das Finanças de não aproveitar a margem que têm para se comprometerem em resolver os muitos estrangulamentos nos serviços públicos só tenha uma interpretação plausível: não confiam nos diversos ministros setoriais para aplicar as políticas adequadas. No fundo, é a confissão de que a incompetência grassa nas diversas pastas ministeriais”.

A incompetência dos membros do Governo é a incompetência de quem os escolheu. Mas não será só incompetência o que grassa nas pastas setoriais, é mais do que isso. Não se pode confundir incompetência com a incapacidade estrutural de fazer melhor. Nem é justo achar que só por que há dinheiro se poderia sempre fazer melhor. “Haver dinheiro” nada nos diz sobre “onde há dinheiro”, nem se o “dinheiro chega a tempo e horas”.

No que diz respeito à saúde, a verdade, como tenho escrito aqui e noutros locais, é que o Senhor Ministro das Finanças não confia na capacidade de o Ministério da Saúde ser capaz de assegurar o que é necessário dentro dos limites de comportabilidade que as Finanças determinam. Ora, nesta questão existem dois erros iniciais.

  1. Por um lado, a leitura do Ministério das Finanças sobre o que é preciso para assegurar a missão de garantir o direito à proteção da saúde está muito aquém das verdadeiras necessidades de hoje. Para as Finanças, ter de pagar saúde é uma maçada e um sorvedor de dinheiro.
  2. Por outro lado, o Ministério da Saúde não consegue implementar políticas com qualidade (efetivas, eficientes, seguras e satisfatórias) porque não se dota ou não se deixa dotar com os instrumentos, humanos e tecnológicos, necessários para o seu desenho e realização.

A estes dois problemas iniciais devem acrescentar-se outros dois, porventura a montante.

  1. Historicamente, o processo político e partidário tende a olhar para a saúde na perspetiva demagógica de angariação de voto através da exploração do descontentamento, quando na oposição, ou na tentativa de contenção de danos, quando no Governo. Tentar fazer vencer a razão das políticas de sustentabilidade através da promoção da saúde e prevenção da doença é normalmente difícil. São intervenções que demoram tempo, pelo que não encaixam nos calendários eleitorais, e atacam setores que tradicionalmente financiam os partidos ou servem clientelas dentro da população.
  2. Soma-se a isto o habitual desconhecimento do que a população deve fazer e exigir para a melhoria do seu estado de saúde. Na verdade, a população confrontada com um sistema de saúde que não responde, está mais preocupada em conseguir uma consulta do que com as mega decisões para a melhoria global do ar que respiramos ou com a prevenção do que os há de matar daí a 20 anos. E não percebe que se lhes diga para não procurarem serviços desadequados para a necessidade, nem que se lhes peça para fazerem o possível para conservar a saúde que têm. Sei do que falo.

Notem que escrevi “sistema” e não apenas serviço nacional de saúde (SNS). Há dias, tentando marcar uma consulta para um familiar, através de um seguro que pago para lá do meu IRS, apenas me garantiam a possibilidade de acontecer em março ou abril de 2024. Seis meses de espera. Não é bom. Mas no setor público, há atrasos de mais de 1 ano, chegando a dois. Se nada for feito para melhorar o estado da saúde dos Portugueses, será todo o sistema de saúde e não apenas o SNS a soçobrar. Todavia, o setor privado pode sempre proteger-se, embora só parcialmente, porque ainda tem uma capacidade de escolha de clientes que o setor público não pode ter. Essa capacidade poderá desaparecer se o número de utilizadores do sistema privado aumentar, o que levará a que os privados procurem aumentar a sua capacidade de resposta. Tem sido assim. Mas essa capacidade de responder à procura nunca será infinita, porque não há recursos humanos ilimitados e a expansão da cobertura tem riscos que os privados calcularão minuciosamente. Só irão crescer até onde houver clientes com capacidade para pagar. O resto ficará de fora, no SNS. E o “resto” é muita gente.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Não vale a pena discorrer mais sobre os principais problemas do SNS que são bem conhecidos. Pelo menos, por quem lá trabalha e a quem precisa de recorrer às suas instituições. Há dificuldades de acesso a cuidados, desigualdades geográficas, edificado caduco, manutenção deficiente, falta de medicamentos recorrentes, material obsoleto, carências de material de uso clínico e até de higiene básica, avaliação de tecnologia lenta e inconsequente, ausência de informatização que garanta a comunicação generalizada dentro do SNS, incipiente capacidade de avaliação de resultados, excesso de burocracia, administração pesada e sem autonomia local ou institucional. Por tudo isto e para “ajudar” em tudo isto, há um enorme contingente de profissionais, globalmente insatisfeitos, muitos sem a preparação desejável para as exigências da saúde no século XXI, mal distribuídos, com funções muitas vezes sobrepostas, executando tarefas redundantes, trabalhando em condições que não são aceitáveis e sem uma liderança em que se revejam. Reparem que eu aceito o incremento da dimensão numérica dos contingentes de profissionais de saúde, em especial nos últimos anos. Só que, repito, estão mal distribuídos, não conseguem ser eficientes nas condições de trabalho que têm e há áreas de especialização, em especial entre os médicos, que não têm os números necessários. Sublinhe-se que, não raras vezes, mesmo que lá estivessem todos os médicos necessários, o espaço de trabalho disponível ou a ausência de acesso atempado a meios complementares de diagnóstico são fatores de estrangulamento que impedem a melhoria da resposta dentro de parâmetros de qualidade.

Concluindo, há necessidade de uma reformulação da política e do financiamento, centrado no indivíduo que tem necessidades, e não nas instituições, para que a saúde em Portugal melhore. Temo que a criação de uma Direção Executiva, embora com virtudes teóricas, e a passagem intempestiva de toda a estrutura administrativa do SNS para Unidades Locais de Saúde (ULS), com méritos que merecem destaque – desde logo o princípio da capitação para cálculo de financiamento em todo o SNS –, não sejam capazes de resolver tudo o que nos faz falta. Até porque, apesar da lógica das Finanças seja a de que têm metido dinheiro e nem por isso as coisas melhoram, vai ser preciso investir ainda mais no SNS. Pode parecer paradoxal, mas não é. O que tem acontecido, por isso as Finanças não confiam na Saúde, é que desde 2016, por razões que se prendem com políticas de alianças e da vontade, ainda mais austera do que no tempo da Troika, de redução da dívida, o dinheiro tem sido estruturalmente malgasto. E tem continuado a ser assim, como se pode ver nas opções, globalmente erradas e inconsequentes a longo prazo, do PRR para a Saúde. O mais importante não está lá. E Portugal, em termos de despesa pública em saúde e comparativamente com outros Países da OCDE, ainda está aquém do desejável. Embora, talvez nos limites do possível.

É neste cadinho que se desenvolvem as negociações entre Ministério da Saúde e os sindicatos das profissões que trabalham para a saúde. As Finanças precisam de ter a certeza – nunca a terão – de que os aumentos salariais garantem maior eficiência. É normal que assim seja. Mas não poderão esquecer que, no atual estado de degradação estrutural do SNS, mais salário será apenas um estímulo extrínseco, essencial para a motivação que se perde a cada hora que passa. Remunerar melhor não será o único determinante para a melhoria da produtividade e eficiência. Até pode ser desperdício se as outras condições de trabalho, incluindo a organização do mesmo, não melhorarem. Do outro lado, os sindicatos, têm de responder junto dos seus associados com a obtenção de ganhos em toda a linha, em especial na vertente salarial. Tradicionalmente apresentam um conjunto de reivindicações maximalistas, algumas de valor duvidoso, de acordo com a visão política e, não raramente, partidária dos seus interesses e da interpretação que fazem dos desejos dos trabalhadores de cada setor. Entre as Finanças e os trabalhadores, está o Ministério da Saúde que avalia as propostas apresentadas e contrapõem as respostas que, na óptica das Finanças, sejam razoáveis. Neste “aperto”, o Ministério da Saúde deve ter a capacidade de demonstrar a ambos os envolvidos, Finanças e Força de Trabalho, que está empenhada em soluções sustentáveis que garantam o funcionamento, com qualidade, do SNS.

E não chegará aumentar os salários. Há que obter a colaboração de todos os envolvidos para a melhoria do desempenho do SNS. Das Finanças, que têm de manter níveis remuneratórios competitivos e motivadores, financiar equipamentos, garantir manutenção e permitir que se comprem as tecnologias adequadas. Dos trabalhadores, que têm de, havendo os meios indispensáveis, assegurar a efetividade, o combate ao desperdício de meios diagnósticos e terapêuticos, o reforço da segurança e promover a satisfação dos utilizadores, a razão de ser do SNS. Da Saúde que não se pode desviar da sua missão e tem de realisticamente desenhar e aplicar políticas que sejam bem mais do que cumprir com o orçamento que o Ministério das Finanças lhes impõe. Mas o interveniente principal, embora não esteja sentado na mesa das decisões, é o utilizador dos serviços de saúde, o contribuinte. Sobre o seu papel, normalmente esquecido apesar de fundamental, irei escrever mais tarde. Para já, interessa reforçar que tudo o que seja o desenho de políticas e o seu financiamento tem de responder ao desígnio de “garantir o direito à proteção da saúde”. Nem sempre é assim.

PS. Pois. Afinal tinha havido a Parte IV da “Anatomia Política” e a ordem cronológica estava certa, ao contrário do que escrevi no início da parte Va. O que não altera que em vez de discorrer sobre Recursos Humanos na Saúde, como “prometido” no final da Parte IV, escrevi só sobre médicos na parte Va. Exigências da atualidade. Desta vez, na parte Vb, enquadrei o contexto em que as negociações com profissionais de saúde deveriam ocorrer.