Fez agora cinquenta anos que D. António Ribeiro foi nomeado Patriarca de Lisboa. Nasceu em Pereira, São Clemente de Basto, arquidiocese de Braga, a 21-5-1928 e faleceu a 24-3-1998, dois meses antes de completar setenta anos.

Ordenado padre a 5-7-1953, doutorou-se em Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma. Foi assistente da Acção Católica e, nas suas intervenções nos meios de comunicação social, sobretudo televisivas, notabilizou-se pela independência em relação ao regime político. A 3-7-1967, com 39 anos, foi nomeado Bispo auxiliar de Braga. Quatro anos depois, a 10-5-1971, foi designado por São Paulo VI, Patriarca de Lisboa, sucedendo ao Cardeal D. Manuel Gonçalves Cerejeira, que atingira o limite de idade. A 5-3-1973, foi elevado à dignidade cardinalícia, inerente à condição de Patriarca de Lisboa.

Nos princípios da década de setenta do século passado, quando o Concílio estava a ser implementado em todo o mundo, viviam-se anos difíceis na Igreja. A recepção dos documentos conciliares teve de vencer, por um lado, as resistências dos sectores mais tradicionalistas e, por outro, fazer frente aos que invocavam o ‘espírito’ conciliar para ir além dos ensinamentos do Vaticano II e, até, para os contradizer.

Em Portugal, sopravam também ventos de mudança. Marcelo Caetano tinha prometido uma certa abertura do regime autoritário que herdara, mas rapidamente a primavera marcelista murchou, por imposição do sector mais conservador do Estado Novo, inflexível no que respeitava a uma possível solução política da questão colonial. A tímida tentativa de liberalização, nomeadamente pela presença da ala liberal na Assembleia Nacional, viu-se gorada com a saída do Parlamento dos deputados que a constituíam. Também dentro da Igreja portuguesa havia tensões, porque alguns católicos questionavam publicamente a guerra colonial, bem como a política do Governo.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

É neste contexto que acontece o famoso caso da Capela do Rato, que exemplifica a valentia do então Patriarca de Lisboa, antes ainda de ser cardeal. O Cónego António Janela recordou recentemente este caso: “No período anterior ao 25 de Abril de 1974, o Padre Alberto Neto era o capelão da Capela do Rato, por ser o assistente diocesano da Juventude Escolar Católica (JEC). Quando ele estava doente, a capela foi ocupada por cinco cristãos. Perante esta situação, de grande melindre político, o então Patriarca D. António Ribeiro chamou-me e disse para tomar conta daquela capela. Arriscou ali o seu cardinalato! Foi um acto corajoso” (Voz da Verdade, 9-5-2021, p. 2-3).

Nos finais de 1972, os ocupantes da capela anunciaram que lá iriam fazer uma vigília pela paz, na passagem de ano. Horas antes, o Padre António foi notificado, pelo Governo Civil, de que não estava autorizado a celebrar lá, no dia 1 de Janeiro, dia mundial da paz. Tendo respondido que tinha recebido ordens do seu Bispo para celebrar nesse dia e lugar, a polícia encerrou e selou a Capela do Rato.

Prossegue o Cónego Janela: “No dia 1 (de Janeiro), fui ler a minha homilia ao Patriarca Ribeiro, que concordou inteiramente. Quando cheguei à capela, pouco antes de começar a celebração, estava um polícia à porta e eu disse-lhe: ‘Senhor guarda, (…) o senhor recebeu indicações para não deixar ninguém entrar, mas o meu Patriarca disse-me para entrar. Por isso, eu entro e, depois, o senhor faça o que entender.’ Quebrei os selos e entrei.” Terminada a celebração da Missa, o Capitão Maltez intimou-o, bem como ao Padre Armindo, para que o acompanhassem até à esquadra da polícia do Rato. Depois de um primeiro interrogatório, o Padre Janela seguiu para as instalações da Direcção-Geral de Segurança (DGS), onde foi de novo interrogado, “com aquelas técnicas, como vem nos livros, com muitas luzes, de um lado o polícia bom e, do outro, o polícia mau. Pelas 4h da manhã, a porta da sala onde estava a ser interrogado abriu-se ligeiramente e eu vi passar o secretário do Senhor Patriarca, o Padre Pires. Soube, mais tarde, que o Senhor Patriarca estava no piso inferior a dizer-lhes: ‘Ou ele sai imediatamente ou eu vou daqui à morada do Primeiro-Ministro, Marcelo Caetano’. Nos dias seguintes tive vários interrogatórios, mas eles não podiam avançar porque sabiam, por escutas telefónicas, que foi por ordem do Patriarca que eu quebrei os selos da Capela do Rato, para celebrar”.

Esta atitude exemplifica a coragem pastoral de D. António Ribeiro. Embora já fosse Patriarca de Lisboa, ainda não era cardeal e, portanto, corria sério risco de nunca o ser, pois bastava que, para o efeito, o Governo diligenciasse, junto da Santa Sé, a sua transferência para outra diocese, ou exigisse o seu exílio, como aconteceu a D. António Ferreira Gomes, Bispo do Porto. D. António Ribeiro sabia bem o risco que corria, até porque a sua nomeação para Bispo da Beira, em Moçambique, tinha sido inviabilizada pelo Governo, por entender que não era pessoa da sua confiança. Contudo, não se deixou influenciar por critérios políticos, nem por interesses carreiristas, privilegiando sempre o bem da Igreja e a defesa da justiça e da liberdade.

Em “Convosco sou Padre – O ministério presbiteral no pensamento e ação pastoral de D. António Ribeiro”, o Padre Joaquim Loureiro chamou a atenção, nesta sua tese de mestrado, para outra característica do pontificado do Patriarca Ribeiro: a proximidade e “cuidado com o clero”. É significativo que, às 4h da manhã, o Patriarca de Lisboa se tivesse apresentado, pessoalmente, na ominosa DGS, ex-PIDE, para exigir a libertação de um sacerdote do Patriarcado de Lisboa, que aí se encontrava retido. E é certo que, se não tivesse logrado a saída do Padre António Janela, teria ido de imediato à residência do Primeiro-Ministro, para apresentar o seu veemente protesto.

Como o bom pastor, que dá a sua vida pelas suas ovelhas (Jo 10, 11), assim o Patriarca Ribeiro estava sempre disposto a defender o seu rebanho, sobretudo os padres, seus colaboradores mais imediatos. O Padre Joaquim Loureiro recolheu o testemunho de vários “padres, que diziam sentir esse carinho e afectividade da parte do seu Bispo. Para D. António Ribeiro, falar com um padre era sempre uma prioridade.”

Também nos tempos conturbados do PREC, sem se deixar intimidar pelos inimigos da fé, nem envolver por políticas que pudessem comprometer a liberdade e missão da Igreja, D. António Ribeiro soube agir, como agora escreveu o Cardeal D. Manuel Clemente, Patriarca de Lisboa, “com lucidez e acerto”.