Há algo de intrinsecamente perverso quando a defesa dos interesses dos mais frágeis justifica uma repreensão do Estado. Um caso exemplar aconteceu recentemente, numa escola em Lisboa. Manuel Esperança, director do Agrupamento de Escolas de Benfica, foi dado como culpado por, num dia de greve aos exames nacionais (21 de Junho de 2017), ter convocado todos os seus professores (214) em vez do número imposto pelos serviços mínimos (73), número que certamente seria escasso para garantir a realização dos exames. Ou seja, enquanto director de agrupamento de escola, decidiu que a defesa dos alunos impunha a convocatória de professores suplentes, para prevenir que o absentismo entre os docentes ferisse o interesse dos alunos e impedisse a realização dos exames. Foi alvo de queixa por parte dos sindicatos, que o acusaram de atentar contra o direito à greve. Foi dado como culpado e repreendido oficialmente, depois de uma carreira imaculada. Segundo consta, embora sem confirmação do Ministério da Educação, haverá outros 16 directores sob acusação idêntica.

Não ponho em causa o processo que levou a esta repreensão. Todos sabem que as regras existem e que são para ser cumpridas. E, obviamente, tanto são incumpridores aqueles que pecam por excesso como por defeito. Mas, legal ou não, há algo de evidentemente injusto na repreensão e na humilhação pública daqueles que, enquanto directores e últimos responsáveis pela defesa dos seus alunos na escola, decidem em função do interesse destes e não da máquina do Estado. Ainda por cima quando, neste caso em concreto, está em causa a protecção contra uma greve que visou sabotar os exames nacionais para, propositadamente, maximizar o dano sobre os alunos – e, assim, instrumentalizá-los na luta sindical e nas negociações com o governo. Ora, um director que usa o interesse dos alunos como principal critério de decisão, sobrepondo-o até ao seu próprio interesse pessoal, só pode ser festejado e estimado pela comunidade educativa que serve. Qualquer interpretação alternativa, mesmo que melhor alinhada com o enquadramento jurídico vigente, será sempre injusta porque pior para os alunos. Legalidade não é moralidade.

Há mais casos destes? Sim, na Educação há muitos mais. Já não é só ninguém proteger os directores de escola nas dezenas de decisões que tomam todos os dias, sempre em contextos difíceis e hiperburocráticos, e onde uma gralha pode justificar uma repreensão. É cada vez pior: a máquina do Estado facilmente se apoia numa infracção menor para intimidar, para abalar carreiras e para derrotar aqueles que, contra as regras do sistema, conseguem resultados extraordinários com os seus alunos.

O exemplo mais escandaloso disso foi o também recente caso de Joaquim José Sousa. Tendo sido o director da Escola Básica Curral das Freiras (Madeira) desde a sua fundação até à sua extinção (2009-2018), fez um trabalho notável com os seus alunos, melhorando o serviço à comunidade educativa e elevando significativamente os desempenhos escolares (nos rankings, passou do fundo para os lugares cimeiros a nível nacional). Só que, após uma queixa, foi alvo de 12 acusações com 388 irregularidades identificadas – tais como enviar horários aos professores por e-mail (não pode, tem de ser em papel); colocar professores a dar aulas extra (não pode, tem de recrutar mais professores); criar coadjuvâncias para apoiar alunos (não pode sem aprovação da tutela); fazer alterações dos horários escolares para adequar às necessidades da comunidade (foram tidos como “irregulares”). Enfim, aspectos de gestão e de autonomia escolar relativamente correntes e que estiveram na base de uma extraordinária subida de resultados. Pouco importa: tudo culminou numa suspensão de 6 meses sem vencimento e perda de mandato. Sim, há semanas e após recurso, o Tribunal Fiscal e Administrativo do Funchal deu razão a Joaquim José Sousa. Mas o mal está feito: não só a sua carreira foi manchada como a escola que liderava foi extinta (decisão contra a qual se bateu, aliás). De resto, a coincidência entre a extinção da escola e a perseguição que foi feita ao seu director torna legítima a dúvida sobre se este teria sido vítima de um processo político.

O que une os casos de Joaquim José Sousa e Manuel Esperança (e outros)? É que decidiram enfrentar a máquina do Estado, em defesa dos seus alunos. É que têm historial de competência e bons resultados para apresentar. É que foram apanhados no fogo cruzado das guerras políticas. É que foram vencidos, repreendidos e rebaixados por uma administração de vistas curtas, que não se importa de sacrificar os fracos para proteger os fortes. Para todos nós que observamos de fora, a lição é clara: não há justiça num país onde se castigam os bons e se protegem os maus.

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