O pior que pode acontecer a alguém em Portugal não é ser incompetente. Na verdade ser incompetente até tem sido um notório factor de promoção para muita gente, mas esse é outro assunto. Hoje trata-se aqui do pior e o pior mesmo está reservado para aqueles que, destacando-se pela sua competência, são chamados a resolver os problemas graves do país, numa fase em que estes já estão transformados em nó górdio. Obviamente o pior começa não quando eles aceitam o cargo – aí presumo que lhes são dadas as mais diversas garantias de apoio político e garantidas interessantes condições de trabalho – mas sim no preciso momento em que tomam a sério os convites que lhes foram formulados e, não só tentam resolver os problemas, como ainda identificam publicamente as razões que levaram a que eles ocorressem. Nesse momento esses até aí reputados técnicos passam de grande aposta e do estatuto da melhor escolha possível a tecnocrata inábil, arrogante e, como não, incompetente.

Esta espécie de filme com final mais que anunciado passa-me diante dos olhos quando revejo a sequência de imagens e declarações que vai desde a intervenção a 27 de Julho de Tiago Oliveira, presidente da Agência para a Gestão Integrada de Fogos Rurais (AGIF) diante da Comissão Parlamentar de Agricultura e Pescas até aos ruidosos pedidos da sua demissão que tiveram o seu momento alto já a 8 de Agosto, quando António Nunes, presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, entregou no gabinete do primeiro-ministro uma carta a exigir a demissão de Tiago Oliveira. Desde que o presidente da Agência para a Gestão Integrada dos Fogos Rurais descreveu no parlamento vários absurdos que imperam no combate aos incêndios, nomeadamente o facto de as associações de bombeiros receberem em função da área ardida e de vários municípios gastarem mais dinheiro a combater incêndios que a preveni-los, que a sua cabeça passou a ser pedida todos os dias.

Tiago Oliveira foi acusado de “estar a mais no sistema” (o que em certo sentido não deixa de ser verdade mas não é de modo algum abonatório para o sistema), de se estar a imiscuir no poder local e de ter uma “posição pouco conhecedora”. Por fim, António Nunes, que ia transformando o país numa ditadura sanitária quando esteve na ASAE, veio agora, na qualidade de presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses, não só pedir a demissão do presidente da AGIF como avisar: “Nós [bombeiros] precisamos de sentir mais afecto do Governo” (A maluqueira com as bolas de Berlim que lhe deu quando dirigia a ASAE ainda vá que não vá, mas esta imagem de António Nunes a pedir afecto é uma coisa que transtorna qualquer um!)

O caso é a todos os títulos patético. Não só o curriculum de Tiago Oliveira é inquestionável como aquilo que aqui está em causa é sobretudo a reacção de quem está no sistema. Se Tiago Oliveira tivesse ficado pelos rodriguinhos habituais nesta matéria, que incluem muitas frases redondas sobre a tragédia dos incêndios, a coragem dos soldados da paz e a invocação de mais meios aéreos, tinha o lugar garantido por anos e anos. Infelizmente nós também teríamos ainda mais incêndios garantidos.

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Quando, em 2017, António Costa deu posse a Tiago Oliveira como presidente da Estrutura de Missão para Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais, escassos nove dia após o incêndio de Leira, procurou o respaldo possível de, num momento como aquele, ter a seu lado alguém com um curriculum sólido no combate a incêndios. A AGIF chegaria já em 2018 e Tiago Oliveira continuava a ser um técnico de reconhecidíssima competência. E agora, em 2023, vai Tiago Oliveira continuar à frente da AGIF? Depende. Porque o sistema, o tal em que Tiago Oliveira está a mais, não perdoa a quem reflecte sobre os problemas: há pouco menos de um ano, era demitido o presidente da empresa pública de gestão florestal Florestgal, Rui Gonçalves. Não porque estivesse a desempenhar mal as funções que assumira em 2021, mas porque publicou um artigo de opinião intitulado “Mudar o que tem de ser mudado” em que chamava a atenção para o sistema de “irresponsabilidade organizada” que em Portugal está instalado na questão dos incêndios. Fazia também um apelo: “em vez de mais um relatório sobre “tudo” — meteorologia, orografia, operacionais, viaturas, meios aéreos, incendiarismo, etc., etc. — fazer uma auditoria simples comparando o que se fez com o que se devia ter feito. Depois é só (?) mudar o que tem de ser mudado“. Ora mudar o que tem de ser mudado é precisamente o que não se espera que alguém faça. Ironicamente talvez a única mudança que se  possa assacar a Rui Gonçalves seja o facto de ter tratado a sua saída da presidência da Florestgal com uma frontalidade rara em Portugal: “foi demitido” fazia questão de explicar o seu gabinete.

Mas há um terceiro protagonista que neste momento representa, ainda mais que Tiago Oliveira, o destino destes profissionais com curricula cheios de bons resultados e que uma vez chamados como salvadores pelo Governo acabam a não conseguir sequer salvar-se  a si mesmos. Refiro-me obviamente a Fernando Araújo, reputado administrador do Hospital São João, e desde Setembro de 2022, diretor executivo do Serviço Nacional de Saúde. Um ano não foi suficiente para que Fernando Araújo conseguisse ter sequer os estatutos da direcção a que preside. Em simultâneo a degração do SNS mantém-se: as listas de espera por uma consulta, as urgências fechadas e os blocos de partos a trabalharem intermitentemente banalizaram-se de tal modo que já não são notícia. O SNS que Fernando Araújo vinha salvar parece estar num processo de definhamento. O país não ganhou, pelo menos até agora, um bom director do SNS mas perdeu um administrador hospitalar excelente.

Na verdade, pessoas com este perfil são chamadas, não para salvar um serviço para o qual já não se consegue arranjar solução, mas sim para salvar políticos em apuros. Passada a aflição aqueles que foram escolhidos como salvadores tornam-se descartáveis. E o convite que fora uma honra torna-se maldição.