Convenhamos, é uma situação sui generis. De um lado, Descalço à baliza, Bento na defesa, Jordão e Peyroteo no meio-campo, Pestana no ataque. Bento? Jordão? Peyroteo? Só nomes de craques do além. É o Sintrense 1993-94. Do outro, o Oriental. Diz-nos Costinha, sem se deixar interromper. “Carmezim à baliza, Paulo Lourenço e Lourenço a centrais, Careca à direita, eu à esquerda, Renato, Manaca, Carlos Ferreira e Luís Carlos. Lá à frente, Serralha e [um segundo de hesitação] Orlando.” Bingo, Costinha sabe de cor e salteado o 11 do Oriental na sua estreia de há 26 anos, em Maio 1994. “Jogámos em Sintra e ganhámos 2-1, bis de Serralha.” Dois-um, bis de Serralha para a 29.ª jornada da 2.ª B, Zona Sul. Bingo, outra vez. Sem querermos entrar em muitos pormenores, só dizemos isto: daí a seis anos, o mesmo Costinha sai do banco para substituir Rui Costa e decide o Portugal-Roménia do Euro-2000 com um golo de cabeça nos descontos. Faz hoje 20 anos.

Recuamos ligeiramente no tempo com aquele “eu á esquerda”. À esquerda? “Quando fui aos treinos de captação do Cê Ó Éle [Clube Oriental de Lisboa], já só havia vaga para lateral-esquerdo nos iniciados. Entrei assim mesmo, sem olhar a meios. Depois, fizeram-me médio defensivo. Ironia das ironias, estreio-me pelo Oriental a lateral-esquerdo.” O treinador é Vieira da Silva, dizemos nós, cheios de convicção a olhar para a ficha de jogo. “José Moniz, José Moniz. Foi a sua estreia, no lugar do Vieira da Silva, que me dizia ‘enquanto não tens experiência, não jogas’.” É um contrassenso, puro e duro. Se não jogas, não acumulas experiência. Se não acumulas experiência, não jogas. Que pagode, mais parece uma rábula dos Gatos Fedorentos. Só que é a vida real. A de Costinha. Acabado de subir aos seniores, o homem resigna-se à espera de um treinador com outra visão. Aparece José Moniz. “Nos primeiros treinos, virou-se para mim e disse-me ‘Comigo, jogas sempre; a forma como treinas, é impossível não te dar um lugar’. No dia do jogo, fui para lateral-esquerdo e o José Moniz a injectar-me moral e mais moral: ‘Basta jogares o que jogaste durante a semana, é mais que satisfatório’. Assim foi. Nunca mais saí da equipa, titular até ao fim da época, mais uns 4/5 jogos. Até joguei um dia a lateral-direito.”

Na época seguinte, Costinha titularíssimo do Oriental. Depois, Machico em 1995-96. A seguir, Nacional em 1996-97. Tudo clubes da 2.ª B. De repente, no Verão de 1997, o surpreendente salto para a 1.ª Divisão francesa. Um treino à experiência, dois e toma lá um contrato, cortesia de Jean Tigana, treinador do Monaco. O céu é o limite. È mesmo. Costinha estica os horizontes e sai do anonimato. Primeiro como Da Costa, depois como Costinha. Estreia-se na Liga dos Campeões em Alvalade, 3-0 para o Sporting (Setembro 1997). Em Abril de 1998, marca à Juventus, em Turim. Em Outubro de 1998, contabiliza a primeira internacionalização AA, lançado por Humberto Coelho. Em Bratislava, com a Eslováquia, no apuramento para o Euro-2000.

Costinha marcou o primeiro golo na Seleção na fase final do Europeu de 2000, contra a Roménia. Faz hoje 20 anos (Foto: Getty Images)

Quatro dias antes, Portugal sofre uma derrota cruel com a Roménia. Nunca a Selecção acumula tanta aselhice num só jogo, chi-ça. O público das Antas recebe Portugal com a alegria de sempre e até canta o “parabéns a você” a Sá Pinto pelo 26.º aniversário. O que se segue é uma sequência terrível de acontecimentos, a começar pelo penálti falhado por Paulinho Santos, digno representante da casa (FC Porto) – no fundo no fundo, o penálti é defendido por Stelea. Na segunda parte, mais achas para a fogueira com a expulsão de Rosu, por acumulação de amarelos. Nem contra dez, Portugal encontra o caminho do golo. E é precisamente a Roménia a desferir o golpe da misericórdia num livre directo em cima do minuto 90. Se não há Hagi, há Munteanu, cujo remate entra colado ao poste direito de Baía.

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No jogo de volta, em Bucareste, o nome de Costinha não faz parte dos eleitos de Humberto Coelho. Acaba 1-1, quatro dias após o escandaloso empate no Azerbaijão (outro 1-1). É imperativo sair de Bucareste com pontos, caso contrário lá voltam as contas complicadas para chegar ao Euro-2000. Portugal até começa bem e JVP falha um golo certo na cara de Stelea. Os romenos acusam o golpe e reagem furiosamente, com Ilie e Hagi a incomodarem Baía. À terceira é de vez. Livre descaído para a esquerda e cabeceamento de Hagi para o poste mais distante, 1-0. Em cima do intervalo, livre para Portugal à entrada da área e Figo mete a bola na gaveta. Com o apuramento assegurado, os romenos descansam daí em diante e Portugal nada arrisca, à espera de ganhar por três golos de diferença vs Hungria na Luz. Ou então, como diz o bem-humorado Humberto Coelho, “espero que o Liechtenstein ganhe à Roménia para acabarmos em primeiro lugar.”

Abel Xavier é o herói dessa última jornada de qualificação, como autor do 3-0 final. Portugal vai ao Euro-2000. Com ou sem Costinha, eis a questão. Na altura da convocatória final, Costinha só acumula três jogos, nenhum deles a titular. Só que é campeão francês pelo Monaco, sempre como titular. Humberto Coelho chama-o, sem medo. “Lembro-me perfeitamente que estava a correr numa passadeira de um ginásio nos Olivais, ao lado de uns amigos, quando soube da convocatória.” É preciso contextualizar: Portugal apresenta-se no Euro com um jogador sem clube (JVP) mais dois sem qualquer jogo na 1.ª Divisão portuguesa, embora campeões nacionais nos respectivos países (Pauleta, Depor; Costinha, Monaco). Curiosamente, os dois esgrimem argumentos a propósito da camisola 15. “Foi um sorteio com direito a leilão. Quem quisesse a camisola x ou y, manifestava-se. Se houvesse mais de um pretendente, o dinheiro falava mais alto. O Pauleta atirou-se ao 9, foi para o Sá Pinto. Também se chegou à frente para o 10, acho, e saiu-lhe o Rui Costa. A ele, saiu-lhe o 15. E a mim, o 18. Pediu-me para trocar, porque o 15 dava-lhe azar e tal.” E tu? “Na boa, só queria uma camisola. Sinceramente, era isto. Se me dessem a camisola 1,5, feliz da vida. Foi a 15? Espectáculo, siga.”

Primeiro jogo do Euro, em Eindhoven. Esplendor à flor da relva, 3-2 à Inglaterra. “O Humberto mete-me a aquecer com 2-2 e nunca entrei.” Risos sonoros. “Fui o primeiro a sair do banco para aquecer e nada. Os outros juntavam-se a mim e entravam em campo. Eu, chapéu.” Cinco dias depois, em Arnhem, tudo diferente. Aparece-nos a Roménia, novamente. O que se segue a uma derrota e um empate? Só pode ser uma vitória. “Dominámos o jogo, sem criar muitas oportunidades. O jogo estava mais para o empate, que nos dava alguma vantagem. Ficávamos com quatro pontos e a Roménia só com dois. Nos últimos 10/12 minutos, a Roménia sobe as linhas. Às tantas, o Hagi obriga o Vítor a uma defesa para canto. Ainda o canto não tinha sido marcado e já estava a ouvir o Humberto a falar comigo. ‘Costa, vamos vamos’. Já estava equipado, com caneleiras, chuteiras e camisolas. Se é para jogar, não podia estar a perder tempo com coisas de atacadores ou assim. Saiu o Rui Costa e fui para o meio-campo, ao lado de Vidigal e Paulo Bento.”

Zero-zero, ainda e sempre. O árbitro dá três minutos de descontos. No último instante, livre para Portugal. “O Paulo Bento vira-se para mim e manda-me para a área, porque cabeceava bem. O Figo marca o livre e eu cabeceio em antecipação ao Stelea.” É o 1-0. Inacreditável, verídico. Pela primeira e única vez, um português sem qualquer experiência de 1.ª Divisão portuguesa marca no Europeu. Pela primeira e única vez, um jogador com três internacionalizações marca um golo no Europeu. História a dobrar. História de Costinha, o homem que se estreia no Oriental em 1994 e decide o destino de todos nós seis anos depois. Repetimo-nos, inacreditável e verídico.

O que se segue? “Primeiro, a alegria da massa humana atrás dessa baliza. Ver o sorriso daqueles rostos desconhecidos foi demais. Depois, alguém quase me arrancava o pescoço. Era o Jorge Costa. E, a seguir, só vejo o Couto todo no ar. O resto, apaguei. Fiquei lá em baixo e nunca mais vi nada. Levantei-me, recompus-me e o árbitro apitou para o fim.”

“Alguém quase me arrancava o pescoço. Era o Jorge Costa. E, a seguir, só vejo o Couto todo no ar. O resto, apaguei” (Foto: Getty Images)

Fim? Só se for do jogo com a Roménia. A vida continua. Costinha cresce ainda mais. A transferência para o Porto, a estreia na 1.ª Divisão, o golo em Old Trafford no último suspiro, o titulo de campeão europeu em Gelsenkirchen (2004). Tudo, tudo, tudo sem excepção faz parte da imagem de marca de Costinha, um herói diferente. Faz-se treinador e, claro, continua a ir ao Cê Ó Éle. “Um dia, estava a fazer o curso da UEFA B e A, lembrei-me de ir ao estádio e vi a subida do União da Madeira do Vítor Oliveira. Num outro dia, vi o Oriental com o Vitória B. No fim do jogo, entrei na carrinha do Vitória, cumprimentei o Neno e dei uma dura no Ricardo Gomes pelo seu comportamento inaceitável. Anos mais tarde, apanhei-o como treinador do Nacional e ele foi o melhor marcador da 2.ª Divisão, no ano em que fomos campeões e subimos à 1.ª” Sempre a dar cartas. Seja em Marvila ou em Arnhem. Amén.