A década de 1990 foi crucial para a política interna italiana: a corrupção entre elites políticas e económicas chegou a um ponto sem retorno e a justiça desencadeou a operação “Mãos Limpas”, que levou ao afastamento de um conjunto considerável de políticos e à forçada reestruturação dos partidos.

No entanto, em vez da esperada renovação de quadros nos partidos tradicionais, o que se seguiu foi uma deriva populista. Silvio Berlusconi ganhou o seu primeiro mandato em 2001, mais por conta de sua notoriedade social do que política, e manteve-se na cadeira do poder até 2011, com uma interrupção de cerca de um ano, apesar de repetidos escândalos e processos judiciais. Berlusconi foi o primeiro de uma linhagem de políticos europeus (e transatlânticos) que não hesitou em usar as fraquezas da democracia para proveito próprio, deixando uma ferida aberta em Itália.

Se antes de 2015 já era tudo suficientemente complicado, a chegada em massa de refugiados do norte de África aos portos italianos e a resistência de outros países em partilhar o fardo italiano de integrar os que vinham com uma mão à frente outra atrás condenou os partidos tradicionais, já profundamente fragilizados pelos escândalos dos anos 1990 e pelos reinados Berlusconi nos anos 2000 e 2010, à insignificância. No meio de toda esta convulsão, Roma tem sobrevivido devido à forma interconectada da sua economia, que vai permitindo produzir riqueza suficiente para o país não colapsar.

Mas mesmo assim, a insatisfação popular fez-se sentir nas urnas há pouco menos de três meses. O Movimento Cinco Estrelas (M5S), eurocético, antiglobalista e antiestablishment, ganhou as eleições, seguido do partido de extrema-direita Liga (a antiga Liga do Norte que estendeu o seu interesse a todo o território nacional). Coligaram-se, e juntos têm maioria parlamentar absoluta.

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Domingo passado anunciaram o elenco governamental: escolheram uma espécie de primeiro-ministro fantoche, Guiseppe Conte, que até teria sido aceite caso não indicassem para ministro da economia e das finanças Paolo Savona, descaradamente contra os desígnios da União Europeia. O Presidente de República, Sergio Mattarella, chumbou o nome de Savona e voltou tudo à estaca zero. Das três soluções possíveis, a criação de um governo de transição, eleições antecipadas, ou a apresentação de um novo governo, ganhou a terceira, mas só por enquanto. Luigi di Maio e Matteo Salvini mudaram Savona da pasta das Finanças para… a dos Assuntos Europeus.

Poderia ser apenas uma ironia, mas desconfio que se trata, acima de tudo, de forçar o Presidente a convocar eleições antecipadas. O M5S e a Liga já perceberam que o que mais lhes convém é voltar a ser sufragados, uma vez que, segundo todas as sondagens, o seu poder sairá reforçado.

Não só em número de votos, mas numa questão mais importante ainda: uma nova ida às urnas com o resultado que se espera, será imediatamente instrumentalizada como um referendo relativamente à permanência da Itália no projeto europeu. E se um Brexit pode ser explicado pela narrativa de que a Grã-Bretanha sempre teve um pé dentro e um pé fora da União, esta tese não teria aplicabilidade a uma tentativa de abandono da UE por parte de Roma. Por muito que nos custe, mais vale Mattarella aprovar um governo altamente eurocético do que dar aos eurocéticos instrumentos que, em última análise, podem implodir a União Europeia. Não se resolve o problema, mas ganha-se tempo.

Itália tornou-se a incubadora de todos os problemas que a Europa vive hoje. E a força dos partidos recentemente eleitos – ainda assim o tipo de “ideologia hospedeira” de Berlusconi era centrista, enquanto agora se caiu num extremo perigoso – mostram nitidamente a que ponto a União Europeia pode estar a chegar. Mesmo que se consiga ultrapassar esta crise, ainda que com muitos custos, não se pode ignorar este alerta. Ou a Europa se reforma rapidamente – tendo em conta as motivos que levam cada vez mais gente a depositar a confiança em partidos populistas-extremistas – ou o projeto europeu pode muito bem ter os dias contados.