De forma inteiramente congruente com o seu arco narrativo, a queda de Boris Johnson foi simultaneamente súbita e prolongada, justificada ao mesmo tempo por um escândalo secundário e um imperativo moral. Até a forma de tudo se precipitar foi trágica, envolvendo um Primeiro-Ministro agarrado a um governo que já só tinha os seus maiores amigos, numa versão pouco impressionante do Rei Lear, mas que, anunciada a demissão, também pareceu passageira, sem crises espirituais no Reino Unido e com o regresso da política para o substituir.

É verdade que todo o som e fúria em redor de Johnson produziram apenas um total de três anos enquanto Primeiro-Ministro, num recorde semelhante ao de Theresa May, o que perante a história britânica é pouco mais do que uma interrupção no curso normal de eventos. Mas o curto período em Downing Street é uma métrica errada para o sucesso de Boris Johnson enquanto personagem política dos nossos tempos.

O espectro de Boris, popular e aparentemente predestinado a substituir alguém, dominou os cálculos da fase final do longo mandato de David Cameron, com resultados desastrosos para o próprio Cameron e para o país, e foi seguramente a sua existência – ainda que mais como símbolo do que como político – a guiar toda a discussão pública no período entre o referendo sobre a saída da União Europeia e a semana passada.

É por isso natural que o legado de um Primeiro-Ministro que, contra a opinião consensual, conseguiu extrair o país da União Europeia e liderar um esforço de vacinação exemplar se arrisque a ser apenas uma vaga memória desconfortável da década em que conseguiu expressar as vontades latentes da maioria do eleitorado.

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Em 2019, quando essa maioria se manifestou, o candidato Boris Johnson era substancialmente diferente da direita em vigor. Não era evidente nessa altura, mas o contexto pedia um candidato capaz de projetar a ideia de dinamismo, mesmo que à custa do risco ou do caos, disponível para gastar dinheiros públicos em grandes projetos, reequilibrar o país e restaurar a perspetiva de prosperidade. Johnson acolheu questões relevantes para os Conservadores como o euroceticismo ou a imigração, mas juntou-lhes um talento natural para escolher as guerras culturais que elevavam o seu perfil em vez de o deixar à mercê dos extremos, mas trouxe de novo uma disponibilidade para abandonar a moral e as políticas que constituíam uma espécie de estética do partido Conservador, com vantagens eleitorais evidentes.

Tudo o que explicou o sucesso em 2019 contribuiu para explicar o declínio em 2022. O contexto mudou. As grandes questões simbólicas foram resolvidas apenas o suficiente para terem perdido intensidade como armas culturais, mas não para se terem resolvido inteiramente como questões políticas. A economia deixou de permitir ilusões sobre a possibilidade de grandes incentivos ao progresso. Boris Johnson parecia o líder certo para fazer avançar o Brexit e responder à guerra na Ucrânia, mas já não para lidar com a inflação ou uma pandemia.

Nas novas circunstâncias, a direita que Johnson fugazmente representou desapareceu na semana passada. O país e o partido lançaram-se em busca de um novo líder e nenhum dos candidatos parece interessado em recuperar as propostas que produziram uma maioria inesperada e substancial há apenas três anos.

Tal como em 2019, o Reino Unido está adiantado em relação ao resto da Europa. Os conservadores vão escolher entre si um Primeiro-Ministro numa campanha que se disputa entre aqueles que querem baixar impostos ou equilibrar o orçamento, para além de oferecer importantes contributos para a definição de mulher. A escolha desse pequeno eleitorado pode ajudar a perceber se o zeitgeist europeu e ocidental se inclina para o regresso da austeridade confiável e tecnocrática de alguém como Rishi Sunak ou a continuação de uma nova direita à direita que abdique de um líder carismático e imperfeito em troca de alguém que pode trazer mais estabilidade e menos brilho – alguém como Liz Truss. Não é uma escolha menor para um partido que governa há 12 anos e carrega dez pontos de atraso nas sondagens. Vibe shift?