A crise da COVID-19, para além dos seus impactos mais imediatos, já começou a transformar a sociedade em múltiplos aspectos. Essa transformação é protagonizada por decisores e pelos seus influenciadores. Por essa razão, convém escrutinar a validade das suas crenças e análises, as quais estão na base das decisões e opções por um determinado caminho de combate ao problema.

Para analisar os enviesamentos das decisões podemos socorrer-nos das finanças comportamentais, área do conhecimento que se dedica ao estudo dos enviesamentos nas decisões financeiras. Os enviesamentos podem ser de dois tipos: enviesamentos cognitivos e enviesamentos emocionais. Os enviesamentos cognitivos são deficiências no campo do tratamento estatístico, no processamento da informação ou na memória dos decisores, das quais resultam decisões enviesadas. Por sua vez, os enviesamentos emocionais resultam de estados mentais que surgem de forma espontânea e não consciente, perturbando o racional das tomadas de decisão.

Numa primeira fase da crise, o trio governo, imprensa e opinião pública mostraram ter o “enviesamento da confirmação” (confirmation bias), o qual consiste na tendência em valorizar as notícias e números que confirmem as crenças prévias, e negligenciar elementos que as contradigam. Por conseguinte, na decisão de lockdown foram valorizadas determinadas interpretações “consensuais” sobre o que fazer para conter a disseminação do vírus, sem procurar, ou em alguns casos ignorando, recomendações que desafiassem essas crenças. Este enviesamento resultou numa atitude de negligência cognitiva do previsível percurso de um vírus sem lockdown, sobrevalorizando as informações que dessem sentido às sucessivas intervenções para conter o vírus.

A tese do achatamento da curva tornou-se “o consenso enviesado” na primeira fase da crise, mas mais recentemente despontaram outros enviesamentos bem mais perigosos. No trio de decisores sobre a nossa liberdade (governo, imprensa e opinião pública) um número crescente de iluminados revelou maior ambição: a erradicação total do vírus. Estes decisores padecem do enviesamento da “ilusão de controlo” (illusion of control bias) e ignoram ou subvalorizam os efeitos colaterais das medidas de erradicação sobre o nosso bem-estar. Esta tese, claramente perigosa porque abre caminho ao totalitarismo, deriva do facto dos decisores, geralmente infectados em maior ou menor grau com o vírus do socialismo, tenderem a pensar que conseguem controlar os resultados de uma determinada medida porque detêm o conhecimento e os meios para o fazerem, ou porque acreditam que outros mais informados os detenham. Esta atitude leva a soluções radicais sem a ponderação de alternativas que permitissem uma convivência com o vírus, balanceando o problema de saúde pública com o problema da saúde económica.

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Entretanto, a realidade tem muita força. Por isso, mesmo os mais mentecaptos ou aqueles que no meio disto não perderam qualquer rendimento (destaco aqui o extraordinário aumento da função pública em pleno estado de emergência) começaram a perceber que isto não “vai ficar tudo bem” se não nos devolverem rapidamente a liberdade económica que, se já era tão cerceada antes com regulações e impostos, sofreu nesta crise enormes golpes por parte dos decisores.

Sou pessimista neste campo. O regresso à relativa normalidade vai ser fortemente condicionado por mais dois enviesamentos: o enviesamento da aversão ao arrependimento (regret-aversion bias), que leva a que os decisores não tomem decisões por medo de se virem a arrepender delas no futuro; e a aversão à perda (loss-aversion bias).

Na verdade, a questão do arrependimento esteve sempre presente nas tomadas de decisão. O governo tomou as decisões que tomou porque teve medo das consequências que daí adviriam no caso de não as tomar. Este facto resultou em decisões caracterizadas por um comportamento de rebanho (herding behavior), pois para o governo é mais seguro estar alinhado com a multidão, pelo que tende a tomar decisões populares que minimizem o risco de ruína do próprio governo. Este aspecto é exponenciado pelos resultados negativos das decisões poderem ser mais facilmente escondidos ou diluídos no tempo, para além do facto de o confinamento ter um impacto económico pouco significativo, pelo menos no imediato, no eleitorado que suporta o governo, isto é, o partido dos dependentes do estado composto por funcionários públicos e reformados. Nos próximos tempos, com o medo instalado, a questão do arrependimento vai impedir os decisores de saírem do status quo de forma rápida.

Provavelmente, numa fase final, que apostaria ser a partir do final de Maio, quando for evidente a redução drástica no número de contaminados e mortos por COVID-19, a lógica dos decisores mudará, embora eu tema que não seja para melhor, porque será condicionada por mais um enviesamento, aliás sempre latente desde que a crise começou.

A aversão à perda (loss aversion bias) é o enviesamento que leva os decisores a valorizarem mais as perdas do que os potenciais ganhos. No contexto desta crise, devido a sucessivos enviesamentos cognitivos e emocionais, a batalha é contra a COVID-19, custe o que custar. Por isso, cada óbito adicional será sobrevalorizado e descontextualizado, dado que a batalha já não será controlar/conviver o vírus, mas sim matá-lo.