Quando se avalia a qualidade de prestação de um serviço, neste caso de cuidados de saúde, temos de rever estrutura, processos e resultados. Normalmente, para efeitos de clareza, a estrutura tem que ver com os meios de prestação, sejam eles materiais, organizacionais ou humanos. Um dos problemas do serviço nacional de saúde (SNS), entre tantos outros, é a sua estrutura em termos de materiais e equipamentos, a chamada parte “física” dos recursos. Há falta de recursos novos, de renovação do que existe e de manutenção.

Ao longo dos últimos anos tenho vindo a assinalar as carências em termos de faltas de camas e gabinetes de consulta. Há a necessidade de criar novos hospitais, substituir alguns dos existentes, acrescentar e renovar máquinas e dispositivos para diagnóstico e tratamento. Já apelei para que o levantamento do que tem de ser feito fosse divulgado de forma a que os contribuintes pudessem acompanhar o que falta e o que vai sendo feito para colmatar as falhas.

Em termos de Hospitais é relativamente simples saber o que falta e já foi tudo devidamente estudado. Algarve (substituição de Faro), Alentejo (substituição de Évora), Seixal (um hospital a sério e não uma unidade de cuidados continuados e mais uma urgência, sob pena de não haver alargamento de Almada que chegue), Lisboa (um hospital em substituição dos “Hospitais Civis”, não estando eu convencido de que o Curry Cabral deva ser fechado, e um outro para substituição ou alargamento do Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa), Sintra (um hospital a sério e não uma unidade de cuidados continuados e mais uma urgência, sob pena de não haver Cascais e Amadora que cheguem), região do Oeste (com encerramento e/ou reformulação de alguns dos existentes) e Gaia (substituição do existente), são as necessidades mais prementes. Estas necessidades são conhecidas há décadas, as mesmas décadas em que houve sempre alguma coisa que impediu estas construções. Enfim, é passado, mas o País terá preferido estádios de futebol, algumas rotundas, centros de saúde demasiado grandes e, acima de tudo, emprestar dinheiro a quem tudo fazia supor que nunca mais pagaria o empréstimo.

A esta falta de novas construções deve-se acrescentar a desadequação das instalações, ainda existentes, na maioria dos nossos hospitais. Há urgência na definição, publicação e implementação de um grande programa de reabilitação no SNS. Não é aceitável que continuemos a ter enfermarias quando o normal seria quartos com não mais de duas camas, idealmente só com uma. Com toda a honestidade há que reconhecer que a maioria dos hospitais do SNS não estão estruturados para cumprir o que é exigível em termos de conforto e controlo de riscos, infeções hospitalares em particular. Por definição, excecionam-se as acreditadas por organizações internacionais, com especial destaque para os hospitais em regime PPP.

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No entanto, o problema mais grave em toda a estrutura do SNS é a manutenção que não se faz com o rigor e a frequência com que deveria ser feita. Há casos extremos de incúria e malvadez como a do gabinete onde, já lá vão uns anos, fui tentar trabalhar e descobri que o lavatório, com torneiras e tudo, estava apenas fixado à parede sem qualquer ligação a canos que, por sinal, nem existiam. Mas há o dia a dia de cada um em que os consertos demoram tempos infindos, passam-se meses até que uma tampa de caixa sifonada de uma casa de banho seja substituída e uma infiltração de água fica a cultivar fungos nas paredes o tempo que for preciso para que as plantas floresçam. Um estore pode ficar avariado e uma lâmpada fundida não ser substituída semanas a fio. Um puxador de porta, mesmo que seja numa unidade acabada de construir, sai do sítio e tem de se instalar um sistema engenhoso de compressas a servirem de manípulo para que a porta se abra. Nada disto é ficção. É a vida dos hospitais e centros de saúde onde as cativações de Centeno não deixam que se contratem engenheiros e técnicos, não se permite o outsourcing e há uma burocracia infindável, incompreensível e nefasta que, sob o olhar atento do tribunal de contas, emperra tudo o que é construção, renovação e manutenção do nosso SNS. É um caso, mais um, em que a legislação, a falta de recursos humanos e a incapacidade financeira apoiam a incompetência.

Como é habitual em fim de ciclo legislativo, este governo, tal como fizeram outros antes dele, veio agora anunciar um programa de verbas para obras e construções e até, finalmente, a promessa de uns milhões de Euros para um novo Hospital no Alentejo, 4 anos depois de prometido. Note-se que os anunciados 150 milhões de Euros ainda serão gastos em anos vindouros apenas se quem vier a seguir os quiser gastar. Para o Seixal e Sintra, também prometidos, nada. Novo Hospital de Lisboa, nada também, já que será uma PPP para construção que tem tido vários problemas processuais. Temo que quando vier a estar pronto, seja lá quando for, já estará desatualizado para as necessidades da população, a exemplo do que aconteceu em Almada.

Um governo sério terá de explicar a sua escolha de prioridades. Porquê o Alentejo antes dos outros? Porque não novas PPP para construção e gestão, se o argumento para os atrasos na construção for falta de dinheiro do Estado?

Gravíssimo, parece-me afrontoso a todos os doentes com cancro em Portugal, é a continuada omissão de verbas para a construção de mais um edifício no IPO de Lisboa. O Governo não quer saber dos doentes com cancro da região sul do País. Não quer, digam o que disserem. Parece que a ideia dominante, depois de assegurar parte do financiamento necessário com a inteligente e oportuna concessão de um futuro estacionamento subterrâneo a uma empresa da esfera pública, será angariar o que falta através de crowdfunding. Nada de errado. É uma estratégia comum em muitos lugares do mundo civilizado e própria do campo do setor social. Não me parece errado que o Estado, tal como aconteceu com a Universidade Nova de Lisboa, procure fundos junto do setor empresarial e privados. Há equipamentos e até edificados do SNS que foram doados por beneméritos. Tudo coisas pequenas se as compararmos com a construção de um hospital. Mas um crowdfunding dificilmente será capaz de angariar as dezenas de milhões de euros necessários, sempre mais de 50. O problema é que não é certo que haja em Portugal capacidade de crowdfunding eficaz e com a dimensão necessária para a construção de equipamentos hospitalares. O caso do “Joãozinho” de S. João é lapidar. Afinal, porque empurram o IPO de Lisboa para o crowdfunding, depois da forma como trataram a ala pediátrica do Hospital de S. João?

Para reunir os montantes necessários para a construção de um novo edifício no IPO de Lisboa e respetivo equipamento, apenas com crowdfunding e assumindo que tudo correrá bem, precisaremos de mais 4 anos, pelo menos. Assim me explicaram peritos neste assunto ainda pouco explorado em Portugal. Mais quatro anos, para quem já espera há quase 30, é inaceitável. O Estado tem de cumprir a sua obrigação e não se deixar substituir, mesmo que não mais do que parcialmente, onde deve ser insubstituível. Enquanto o SNS não der garantias de responder uniformemente com a qualidade devida e enquanto a sombra da má gestão pairar sobre tudo o que é público, nenhum privado quererá aventurar-se a delapidar património com apoios para a construção de estruturas cujos fins assistenciais poderão não ser cumpridos. Precisando de investimento, é fundamental demonstrar capacidade de prestação de elevada qualidade e de gestão imaculada, para depois convencer os privados a doar ao SNS montantes que permitam construir estruturas com a dimensão necessária. A Universidade Nova de Lisboa vendeu uma marca que o SNS nada tem feito para manter.

Não quer dizer que não se possa invocar a caridade e obter fundos de privados. Veja-se o recentíssimo caso da angariação de meios para comprar um medicamento para uma criança internada no SNS (uma impossibilidade legal e factual) que reuniu rapidamente a contribuição de um largo número de incautos e bem-aventurados. Seria que os mesmos milhões seriam juntos se o que estivesse em causa fosse a construção de uma unidade assistencial pediátrica?

O Estado é o principal prestador, como não deve deixar de ser, de cuidados diferenciados. Em Países onde não há um SNS e até mesmo em alguns que têm serviços públicos de saúde, há um conjunto de instituições privadas, financiadas por fundações ou equivalentes, com legados milionários, que tratam doentes de todas as origens, com total gratuitidade que chega a abranger as viagens para que lá se chegue. Em Portugal, não há setor privado não lucrativo financeiramente robusto para ser capaz de se dedicar à prestação totalmente gratuita, sem nenhum tipo de ajuda do Estado, dos tratamentos de doentes com elevado custo assistencial. Não há! Por exemplo, na oncologia há o SNS gratuito e há privados, com o seu negócio legítimo, a quem convenções ou acordos com o Estado, companhias de seguros e as pessoas que podem, pagam os tratamentos…enquanto podem. Nem os centros de investigação privados que tenham ensaios clínicos podem assegurar tratamento gratuito a todos os doentes. Os ensaios clínicos não substituem o tratamento continuado, não cobrem o custo de toda a medicação e só são uma alternativa disponível para doentes altamente selecionados. Sem a existência de um seguro público universal de saúde e na ausência de verdadeira generosidade, aos doentes só resta começar e acabar no SNS.

E também há a manifesta dificuldade ou incapacidade de usar soluções onde elas já existem. Os regulamentos das compras públicas não permitem ao Estado contratar serviços com privados, fácil e rapidamente, sem que se demonstre a necessidade de maneiras que nem ao Kafka lembrariam. Ainda mais difícil é a possibilidade de arrendar ou comprar instituições privadas para com elas prestar serviços do SNS.

Cá está um tema bem interessante para debate pré-eleitoral. Até onde deve ir o controlo e intervenção do Estado central na construção, compra e manutenção de equipamentos para o SNS? Qual o papel que deve ser reservado às autarquias? Ficam apenas com a manutenção de centros de saúde? Essa solução será mais barata e eficiente? O SNS só precisa de médicos e enfermeiros ou também de engenheiros, marceneiros, canalizadores, eletricistas e jardineiros? Temos de ter todo este pessoal ou não haveria lugar a outsourcing como se faz com a alimentação, lavagens e limpeza? Não poder haver lugar a comprar ou arrendar hospitais privados, como já acontece com algumas das Misericórdias? Em alternativa, qual poderia ser um programa de concessão de gestão de instituições do SNS por atores do sector social ou empresarial? Quais, quantas, em que moldes? Que soluções podem ser implementadas para convocar doadores, empresas e fundações a comparticiparem no crescimento do SNS? As licenças de telecomunicações impunham contrapartidas e investimentos sociais. Porque não pensar num sistema semelhante para a atribuição de licenças a operadores privados na saúde? E os excedentes da Entidade Reguladora da Saúde (ERS), se os houver, não poderiam reverter para melhorias de qualidade no SNS? Até lá, entretidos com o que o governo nos quer entreter, com as “generalidades” em que o debate político se transformou, vamos abrindo portas com puxadores feitos de compressas e colam-se gavetas com adesivos.

Médico e antigo ministro da Saúde