Pastoreio uma Igreja Evangélica na Lapa há uma década. Além de toda a suspeita que ser pastor evangélico já pressupõe no nosso país, imaginem o extra quando isso acontece num bairro privilegiado da capital. Juntar evangélicos entre os endinheirados é como calçar chinelos na passadeira vermelha. Nessa medida, os últimos dez anos da minha vida têm sido também levar a lepra para a Lapa.

Quando o Herman José tinha piada ríamo-nos das tias da socialite, entaladas no dilema de guardarem algumas tradições religiosas ou deixarem-se mundanizar como betas que já não conseguem ser beatas como as suas avós foram. As Lilis e as Cinhas, trazidas à ribalta pelo humorista, encarnavam na tevê a angústia ancestral de tentar resistir a ganhar o mundo perdendo a alma. Nesse sentido, as tias da Lapa ainda têm espíritos para salvar mas dificilmente se sujeitariam a que tal acontecesse na Igreja onde quem está são as suas empregadas domésticas. Louvo na Lapa mas há pouca Lapa onde louvo — há poucas tias dentro da minha Igreja.

Certamente que há na minha Igreja na Lapa gente da Lapa. É pouca, ainda assim. A grande maioria vem de fora e, por isso, facilmente se encaixa no papel de invasor. Sei disso e sinto isso no modo como nos cruzamos com os moradores. Não quero estar aqui com a cantiga do coitadinho até porque coitadinho é coisa que não sou, mas os produtos originais da Lapa sabem fazer sentir os outros como os produtos não-originais que, de facto, são. Eu, que ainda por cima não vivo na Lapa mas venho de Oeiras, integro uma pequena multidão de gente que, ao praticar a sua religião longe de casa, não consegue totalmente ter casa onde pratica a sua religião.

E se aos Domingos é notório o nosso desencaixe, trazendo uma devoção animada que em tudo contrasta com a reserva fina e púdica do catolicismo cultural que ainda prevalece ali, durante a semana o mesmo acontece ainda que de outra maneira. Aos dias de semana chego cedo à Lapa, aí por volta das oito da manhã. Como venho de comboio, faço o percurso suburbano típico, precisando literalmente de ascender, uma vez que a estação de saída é a de Alcântara (ou Santos) e a subida impõe-se. Venho acompanhado de outras pessoas que seguem para trabalhar na Lapa: geralmente empregadas domésticas de origem africana (que em poucos minutos saem fardadas da casa das patroas para passearem os cães vistosos), e homens que vão para as obras que ali recuperam qualquer velho casebre para futuros preços exorbitantes com vistas incríveis para o rio. Estou, como pastor evangélico na Lapa, na mesma condição daquele povo, socialmente abaixo. Não é, por isso, por acaso que com frequência ouça na boca destas empregadas e destes homens das obras cânticos evangélicos enquanto trabalham. Como já escrevi num texto antigo, “os evangélicos são os pretos do cristianismo” e são esses mesmos que servem nos bairros privilegiados lisboetas.

Na realidade, este texto não é acerca de diferenças sociais e não quero usar de, ao notá-las, inscrever-me no lado certo da história, que é nestes dias inevitavelmente arrendado aos supostamente desfavorecidos. Não acredito em desfavorecidos porque a graça de Deus ainda é de facto gratuita e para todos (como bem explicava a menina da coboiada do “True Grit”), e porque, no meu livro sagrado, quem está mais tramado são os ricos que, só com a dificuldade de um camelo num buraco de agulha, entrarão no Céu. Eu, que nunca fui rico, não tenho pena de quem, como eu, nunca rico foi: tenho sobretudo pena dos ricos para quem salvar a alma é ainda mais difícil. Talvez por isso, Deus me tenha colocado a pregar no meio deles. Eles, que pouco me ouvem, vivem mais à rasca do que os enrascados, de quem estou financeiramente mais perto—estou no bairro dos ricos com a bancarrota dos pobres, eis a minha vocação.

Mas a pena que tenho dos ricos não é o paraíso que imponho aos pobres. Não é pelo facto de os ricos constantemente se amaldiçoarem a si mesmos, pela ganância em ter mais, que os pobres se abençoam por pouco ter. Só quem nunca teve pouco idealiza o pouco ter como um nirvana existencial. O elogio da pobreza dos evangelhos não tem a ver com dinheiro mas com dependência: o pobre de espírito (ou humilde, em Mateus 5:3) é mais feliz porque não tem medo de precisar de Deus. Os ricos vão-se independendo de Deus e essa é a mais terrível maldição que infligem a si mesmos. Ser pobre é muito mais do que uma categoria social. Neste sentido, Marx conseguiu ser o teólogo mais popular dos últimos séculos, ao enxotar do conceito de pobreza tudo o que vai além da economia.

O que Marx intuiu, com muito mais palavras e confusão do que era necessário, é que todas as pessoas são estrangeiras aos olhos dos outros. Karl julgou que esta estrangeirice que nos é intrínseca vinha sobretudo do que temos, mas aí falhou: vem do que somos. Claro que é mais fácil colocar as coisas em termos económicos do que ontológicos, porque o dinheiro que cada um tem facilmente se mede. Mas a origem da questão, no facto de sermos todos estranhos uns diante dos outros, não é o que temos na carteira mas o que temos no coração. Somos criaturas tão inevitavelmente dadas à perdição que parte substancial da nossa vida é perdermo-nos dos outros e perdermo-nos até de nós próprios (Marx preferiu falar em “alienação”, para que a origem judaica e religiosa do conceito não fosse tão óbvia).

Logo, o que está verdadeiramente em causa quando chego de manhã à Lapa, acompanhado de todos os outros proletários vindos dos subúrbios que se apeiam dos transportes públicos, não é a luta de classes. Eu, os homens das obras e as empregadas domésticas que vão servir num dos bairros privilegiados de Lisboa, não somos, em primeiro lugar, gente desfavorecida, em contraste com a fartura da vizinhança. Somos pura e simplesmente gente diferente, gente estranha ao padrão local. E a verdadeira luta que se vai eternizando não é a de classes mas a da diferença. Muito menos do que a falta de classe nos outros, assusta-nos uma forma de vida que seja tão vida quanto a nossa mas numa forma tão diferente. Com dez anos de levar a lepra para a Lapa, recordo que, depois de Jesus ter curado dez leprosos, só um lhe agradeceu—o estrangeiro.

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