1 Não há só guerra na Ucrânia.

Nos dias que correm criou-se a ideia de que só é importante o que se passa na Ucrânia, vilmente invadida. É, certamente, mas não é a única guerra que decorre. Não ignorem outros Países e Nações que permanecem há dezenas de anos, de forma contínua ou intermitente, em guerra. Acontecem em África, na Ásia, no Pacífico e, em menor escala, na América do Sul. Procurem que encontrarão notícias da Líbia, do Sudão, da Etiópia, do Mali, da Nigéria e do Congo, do Iémen e da Síria, de Israel e da Palestina, do Iraque e do Curdistão, ainda do Afeganistão, do Cáucaso, de Caxemira, dos Padresh, da Birmânia, da Tailândia, das Filipinas, dos guerrilheiros marxistas e narcotraficantes que ainda estão nas selvas da Colômbia e do Perú. A conflitualidade está aí, connosco, na proporção direta da intolerância e do dinheiro “fácil”.

2 A Rússia é o que sempre foi. Um Império.

Nem os supostos “comunistas” eram comunistas. Eram imperialistas, herdeiros do poder Romanov que usurparam por golpe de Estado. Até ao Gorbachev, a URSS era um Estado imperial com semelhanças ao Sacro Império Romano Germânico, federado e com um imperador eleito por colégio. Enfim, eleito será excesso linguístico. Digamos que decidido pelos interesses dominantes entre as elites do partido, mais purga ou menos purga. Comunismo era cimento ideológico para consumo interno e produto para exportação do Império. Agora veio Putinperator que, independentemente dos pretextos que arranje, quer recuperar a Rússia que o fim da URSS desbaratou. É um estado de espírito que não se compraz com rebuços morais. O sentimento da necessidade de conquista não é compatível com o respeito pela terra dos outros.

3 A terra não é só de quem a trabalha.

A noção de pertença da terra é uma questão difícil em muitos lugares do mundo. A lógica do “cheguei primeiro” desvanece-se com o passar do tempo. Se forem só por esse caminho, Judeus e Árabes nunca se entenderão sobre que tem direitos territoriais sobre a Palestina, para já não falar na posição moralmente periclitante dos Europeus nas Américas. O leste Europeu, numa perigosa aproximação da África de hoje, tem fronteiras que resultam de tratados construídos em cima de tratados, de migrações e deportações. As fronteiras entre Estados Bálticos, Polónia, Prússia, Alemanha, Rússia e Império Austro-Húngaro estão há séculos a deslocar-se. A Ucrânia é um bom exemplo do que têm sido fronteiras em movimento periódico.  O Cáucaso, entre Ossetias, Kabardino-Balkaria, Abkhasia e enclaves como o de Nagorno-Karabakh, ainda é mais confuso. Georgianos, Russos, Arménios e Azeris trocam tiros regularmente.  Os circassianos já foram Turcos e a margem norte do Mar Negro teve Gregos e Alemães, até que Estaline os mandou para o Casaquistão. O mesmo Estaline que deportou em massa Ingushes, Karachais e Chechenos por, supostamente, terem colaborado com os Nazis. E, com a mesma pulsão genocida, já tinha aplicado a terapia da fome à Ucrânia, no período de imposição da reforma agrária vermelha, o Holodomor.

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4 Há sempre razões de queixa.

Se os Ucranianos se queixam, bem que têm razão, os Russos respondem com as divisões SS ucranianas e as forças da extrema direita de Melnyk, Bandera e Setsko que assassinaram dezenas de milhares de Polacos, Judeus e Russos. Razões de queixa terão todos. Não há justiça ou vingança que justifique a brutalidade da guerra. Ter varrido com napalm a cidade de Tóquio, destruído Guernica, Berlin, Hamburgo, Londres, Coventry e Dresden, sem propósito militar que não fosse instilar terror, só foi crime para quem estava de um dos lados. Os vencedores nunca cometem crimes de guerra. As bombas de Hiroshima e Nagasaki foram legitimadas porque, assim dizem, o massacre de civis poupou a vida de milhares de militares e de ambos os lados da guerra. Homo lupis homini. Nesta guerra da Ucrânia, como em todas, haverá atrocidades dos dois lados.

5 Ninguém está autorizado a ser neutral.

Com a Guerra da Ucrânia de 2022, como acontece com qualquer conflito em que todos tendem a tomar partidos, assiste-se ao usual maniqueísmo em que os soldados Russos não são filhos de mães que sofrem com a sua perda, só os Ucranianos são heróis. Putin poderá ser um criminoso (tudo indica que é mesmo) e o Zelinsky um novo Ghandi (mas com armas, já agora). Quem tentar chamar as partes à razão é um colaboracionista. Já li, neste jornal, que ser neutro é estar com Putin. Tentar ver os dois lados, ponto de partida para qualquer negociação, é uma concessão aos patifes do Kremlin. Assim não vamos lá. Como também não me parece que o insulto recíproco seja uma boa plataforma para começar a conversar.

6 Todos vão perder esta guerra.

A opinião pública precisa de se preparar para aceitar um acordo em que todos possam dizer que ganharam alguma coisa e todos vão perder. Os Russos enganaram-se ou quiserem deixar-se enganar. Começaram devagar, aparentemente mal preparados, esperando uma rendição imediata dos Ucranianos. Agora, como na Síria, vão destruindo para abrir caminho, presos na lama, presos no tempo que corre contra eles. A vantagem está do lado de quem defende escombros. Em Mariupol, cidade mártir, a Estalinegrado que os Russos ofereceram aos Ucranianos, luta-se casa a casa e mata-se por um metro quadrado. Os Russos tentam chegar à linha do Dniepre e cortar a Ucrânia ao meio. Dificilmente o conseguirão. Muito provavelmente terão de parar com o acentuar do degelo. Terrenos empapados não são próprios para cavalgadas de blindados. Por estrada? Tem-se visto. Dispara-se para o da frente, provoca-se engarrafamento, abatem-se os de trás. Kiev só cai se for terraplanada.

No fim desta guerra que poderá acabar, um dia, nem que seja por exaustão ou porque o casus belli será esquecido, a grande vitória da Ucrânia e Rússia será voltarem todos à linha de partida como já li em artigos de opinião. Um finlandização ucraniana, uma aceitação de impotência depois de mostrar resistência. Um empate em que o maior ganha. A Rússia ficará com um Donbas, talvez maior do que agora tem, mais a Crimeia a fechar o estreito de Khech. A Ucrânia ficará fora da NATO, como já os próprios admitiram e o Boris confirmou. Bem dita guerra da Ucrânia, pensará o PM Britânico, que fez esquecer as festas em Downing Street e fez do homem um estadista. A Ucrânia poderá entrar na UE, daqui a uns anos, o que será um bónus para as empresas de construção que se vão encarregar da reconstrução. Entretanto, morreram e ainda vão morrer milhares de pessoas, de muitas nacionalidades. Para quê? Para que os políticos cantem vitória e tudo fique mais ou menos igual?

7 A Ucrânia está só.

Se a NATO quisesse ter defendido a Ucrânia teria lá colocado tropas, um avião que fosse, à luz de um tratado de defesa, ainda antes da adesão como membro de pleno direito daquele País Europeu. Poderia tê-lo feito antes mesmo da concentração de tropas russas. Não o fez, para não irritar Putin, e agora nunca o fará. A Ucrânia está e estará sozinha no terreno, como ou sem Brigada Internacional de Machados lusos e quejandos. Eles que se aguentem que nós mandamos as armas. A Ucrânia, quem sabe, poderia ter aceitado a perda do Donbas e da Crimeia como moeda de troca para a afiliação à NATO. Com uma base Americana no seu território, imagino que as negociações seriam mais fáceis. Mas a NATO e a União Europeia tiveram medo. Medo de perder, medo do frio que a perda do gás russo traria. E a Ucrânia não quis ceder um milímetro.

8 Da guerra não vai resultar nada de bom.

Haverá quem diga que a “ordem internacional” mudou. A sério? Acham mesmo que a Rússia, com ou sem Putin, vai passar a ser politicamente diferente? Imaginam que a China desistirá de Taiwan, agora que já sabe que os Americanos rosnam, mas não mordem? Os Europeus, Russos incluídos, estarão doravante juntos frente às ameaças do Islamismo fanático? Não creio, até porque o alinhamento atual é Rússia + Xiitas (Irão e afiliados) vs América + Sunitas (Arábia Saudita e petróleo do Golfo). A guerra fria voltou? Alguma vez tinha acabado? O Great Game de hoje é a Índia alinhada com a Rússia e EUA aliados do Paquistão, uma reserva de terroristas encartados. O cinismo é tão grande que os EUA já nem se importam de ter um Afeganistão talibã, sunita, só para que o Irão não se estenda para leste. E talibã que se preze não gosta de Russos. Alguém deixará de comprar gás e petróleo à Rússia? O gasoduto da Rússia para Alemanha, o tal que a Sra. Merckel, criada na RDA, tanto apadrinhou, está no limbo mas ainda vai fazer o seu serviço quando a coisa acalmar. A OPEC aumentou a produção? Valeu a pena intervir na Líbia? A Síria está melhor depois de Russos e Americanos terem andado lá a deixar cair umas bombas? Os Curdos já têm País sentado na ONU?

Provavelmente as maiores mudanças, graças a Putin e associados, tenham sido o incremento da consciência europeia para ocidente da Rússia e o reaproximar da América e do Reino Unido ao espaço continental Europeu. Daí resultou o enfoque, embora eticamente nefasto, na necessidade de aumento do potencial bélico da NATO, Alemanha incluída. Ninguém se iluda. Gastar mais em armamento e defesa implica mais dívida e menos despesa em bens sociais, incluindo na saúde. Por outro lado, empurrar a Rússia para entendimentos a oriente e promover condições para uma Eurásia ainda mais Chinesa não será bom para a Europa. A Guerra da Ucrânia deveria e poderia ter sido evitada se tivesse havido mais bom senso e clarividência de Putin, Zelinsky, da NATO e dos EUA. Agora, chegados onde estamos, por mais que procurem nada de bom resultará para ninguém.

Lamentavelmente, a Rússia, grande País Europeu com extensão Asiática, acaba sempre por preferir uma dimensão imperial autónoma e longe da integração com o resto do continente que está a ocidente. Não querem “pertencer”. O melhor será aceitar isso, desistir de tentar impor aos Russos o que não podem, nem querem aceitar, e conseguir negociar em termos que acomodem algumas das reivindicações de cada parte. Vai ser difícil. Agora, como Putin decidiu e a NATO acabou por aceitar, isso só será possível depois de mais uns massacres e destruições. Não, veemente não, a guerra não pode ser a continuação da política por outros meios, mas quando começa é difícil que acabe antes que ambos se cansem ou de alguém aceitar desistir. Nenhuma destas opções estará para muito breve. Espero estar enganado. Como comecei, há guerras tão antigas que ficaram esquecidas. Arrefecem, mas não desaparecem.