Esta semana fazemos um balanço do ano que está a terminar, destacando um acontecimento e um protagonista. Sei que o calendário é um artifício, como qualquer criação humana. Mas nem por isso deixa de ser um instrumento muito útil para colocar ordem na natureza e para nos ajudar a situar em conjunto a sucessão de eventos que marcam a nossa vida, individual e coletiva. Para a semana ficarão alguns livros que marcaram o meu ano e nos ajudam a perceber o mundo em que iremos viver.

Uma guerra diferente das outras

Estamos a falar, claro, da invasão russa da Ucrânia iniciada a 24 de Fevereiro de 2022 e que já completou 300 dias, resultou em dezenas de milhar de baixas militares dos dois lados, mais de 4000 vítimas civis, e milhões de refugiados. É verdade que não faltaram conflitos violentos nas últimas décadas, não ignoro isso. Sei que os EUA e os países ocidentais estiveram envolvidos em guerras no mínimo questionáveis. Mas nada disto altera o facto de que esta é a primeira guerra de conquista e anexação imperial desde o final da Segunda Guerra Mundial.

Também é claro que os sonhos imperiais de Vladimir Putin, no poder na Rússia desde 2000, são os responsáveis por esta agressão armada. Ela viola não só a Carta da ONU de 1945, como também o memorando de Budapeste, de 1994, em que a Rússia garantia a independência plena e a integridade territorial da Ucrânia em troca das suas armas nucleares. Esta guerra demonstrou a fragilidade do poderio militar russo. Mas o conflito não acabou ainda e tem o potencial de ser profundamente perturbador da ordem regional e global.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

É verdade que ambos os lados têm sofrido enormes perdas, mas nem Moscovo, nem Kiev dão sinais de cedência, e as suas exigências mínimas não parecem conciliáveis por via de um acordo negociado. A Ucrânia continua a apontar como prioridade a recuperação dos 15% do seu território ocupado pela Rússia. O Kremlin considera que tem no mínimo de “libertar” todo o território dos quatro distritos do Sul e do Leste anexados, mas está longe de o conseguir. Veja-se a tentativa desde Maio de tomar Bahmut, que transformou numa espécie de Verdun do século XXI, uma batalha de atrição nesta fase de guerra de trincheiras a fazer lembrar a Primeira Guerra Mundial.

O que torna tão decisivo este conflito é ser uma demonstração da enorme fragilidade das pretensões da Rússia a ser uma grande potência, o que não a torna menos perigosa, pelo contrário. É a possibilidade, remota, mas não impossível, de uma escalada descontrolada levar a um choque direto entre os EUA e a Rússia, e potencialmente a uma guerra nuclear. Ou ainda, por ser um teste, bem-sucedido para já, à solidez do Ocidente e à sua capacidade de defender aliados democráticos em circunstâncias geoestratégicas muitos adversas. O decurso e o desfecho desta guerra é o evento decisivo para o futuro da ordem regional e global em que vamos viver nos próximos anos. Se regressarmos ao regime de direito de conquista pelas grandes potências, iremos todos viver num Mundo muito mais perigoso.

O homem mais poderoso do Mundo

Seria normal escolher Zelensky como personalidade do ano. Ele revelou grandes qualidades de liderança, ultrapassando grandes divisões internas, criando uma frente nacional de resistência ao invasor, mobilizando apoios internacionais indispensáveis para viabilizar um combate assimétrico com uma potência que batia a Ucrânia em dez para um nas principais capacidades militares. Optei, no entanto, pelo líder chinês, Xi Jinping. É certo que ele está no poder desde 2012, mas este ano é um marco decisivo no seu percurso. Xi devia reformar-se este ano, depois de dois mandatos, em linha com o modelo político de autoritarismo moderado, institucionalizado pela elite comunista chinesa liderada por Deng Xiaoping, desde 1978. Este modelo, claro, não garantia um democracia pluralista e liberal, mas visava limitar os piores excessos e os maiores riscos de uma concentração excessiva de poder numa só pessoa, como tinha sido o caso de Mao Zedong. O dito “grande timoneiro”, que definiu o rumo da República Popular da China desde 1949 até à sua morte em 1976, tinha levado o país a desastres que causaram milhões de mortos. Xi conseguiu pôr de lado esse modelo pós-Maoista, alterando a lei e consolidando o seu controlo do Partido-Estado que domina a China continental. O congresso de Outubro passado do PC chinês foi, portanto, a consagração definitiva duma concentração de poder que não se via na China desde o tempo de Mao.

Os EUA ainda são mais poderosos que a China, mas o poder de Biden é muito mais limitado do que de XI, desde logo no tempo. Putin tem mais poder pessoal, mas a invasão da Ucrânia revelou grandes fragilidades na potência russa. Já Xi garantiu este ano que poderá continuar a ser a figura central na política chinesa nas próximas décadas, com enorme peso na vida global.

É verdade que ser o homem mais poderoso do mundo não é o mesmo que ser omnipotente ou omnisciente. Logo a seguir a este triunfo pessoal, Xi enfrentou o maior desafio desde a sua subida ao poder, em 2012: uma vaga de protestos populares sem precedentes contra o regime draconiano de Covid zero, que tinha identificado como um sucesso do seu governo e um sinal da superioridade do regime chinês. Xi acabou por se ver forçado a aceitar uma moderação na postura de combate ao vírus, correndo o risco duma nova vaga mortífera da doença. Esta é uma possibilidade real nas próximas semanas que poderá ter um impacto muito negativo no próximo ano, a nível global, e, quiçá, no regime e no líder chinês. O futuro continua em aberto, para Xi como para todos nós, mas o seu peso na política global é, para já, uma certeza.