De tempos a tempos, Cavaco Silva ressurge na vida pública em Portugal. Seja com um artigo de jornal, com uma conferência ou com um livro, o político eleitoralmente mais bem-sucedido da democracia portuguesa tem ainda o condão de, aos 84 anos, conseguir colocar a esquerda a espumar de raiva e profundamente irritada. A direita, por seu lado, especialmente o PSD, tem ataques de saudosismo e de sebastianismo dos tempos em que conseguia mobilizar os portugueses e era uma verdadeira máquina de triturar líderes do PS.

Cavaco Silva é, certamente, uma das personalidades políticas mais polarizadoras da democracia portuguesa. Todos os escribas da imprensa portuguesa tiveram já a oportunidade de escrever “o seu” artigo sobre Cavaco, dando a sua explicação para as motivações do ódio que uma bela parte do país lhe tem. No que se segue escrevo de um ponto de vista que, apesar de tudo, está pouco representado nos comentadores em Portugal. Nasci quando Cavaco iniciou os seus mandatos em São Bento e as minhas memórias do seu trabalho enquanto Primeiro-Ministro são quase inexistentes. Ao contrário, por exemplo, de José Sócrates, cujo mandato representou a minha maioridade política e sobre quem não consigo escrever de forma puramente racional, penso conseguir olhar para os mandatos de Cavaco Silva com alguma clareza.

Os mandatos de Cavaco Silva representaram para a esmagadora maioria de portugueses, que, durante décadas, haviam vivido na mais abjecta pobreza, uma coisa simples: esperança e um aumento claro das condições de vida. O mérito, obviamente, não é maioritariamente de Cavaco. Houve um conjunto de circunstâncias históricas que ajudaram Portugal naquele momento. Depois do Dr. Soares e de Medeiros Ferreira terem conseguido a entrada de Portugal nas Comunidades Europeias, com as negociações iniciadas em 1977, e Sá Carneiro ter tornado a direita eleitoralmente viável e politicamente frequentável em 1979, Cavaco Silva foi encarregado pelo decurso histórico da democracia portuguesa com a missão de concretizar o plano de, finalmente, tornar Portugal um país Europeu.

Durante os anos de Cavaco Silva, o país teve finalmente acesso a um conjunto de recursos financeiros que permitiram criar um aparelho de estado minimamente moderno e funcional. Entre 1985 e 1995 foram feitas um conjunto de reformas fundamentais exigidas pela UE para que Portugal se tornasse um país civilizado. Deixo apenas alguns exemplos. Miguel Cadilhe criou um sistema fiscal que permitia ao Estado recolher impostos de forma minimamente coerente. Foram feitas infraestruturas fundamentais para o funcionamento do país, como uma simples e básica auto-estrada entre Lisboa e Porto. A revisão constitucional de 1989 permitiu, finalmente, eliminar os resquícios estatizantes do PREC, dando lugar, por exemplo, ao aparecimento da televisão privada. Durante os tempos do Cavaquismo e de enriquecimento do país surgiram ainda jornais como o Independente e o Público, que viriam a ser fundamentais para o aumento da qualidade da democracia e da fiscalização política.

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Os tempos do Cavaquismo permitiram a criação de um embrião de uma classe média urbana cujos gostos e aspirações sociais estavam rapidamente a mudar. Queríamos ser Europeus. Pensávamos que seríamos Europeus. Vasco Pulido Valente cunhou, inclusive, com o brilhantismo que lhe era habitual, a expressão “homo cavaquensis” para se referir à espécie de homem novo que Cavaco pretendia criar em Portugal. No entanto, há vícios existentes em Portugal que não só vinham de antes de Cavaco como foram alimentados por Cavaco. Por um lado, o então primeiro-ministro rodeou-se, tal como agora António Costa o faz, de um conjunto de gente pouco recomendável. A diferença, no entanto, é apenas uma: Cavaco tinha uma marcação cerrada por parte da imprensa e, muitas vezes, os ministros nem sequer duravam até ao final de sexta-feira de manhã. Quando o Indy tinha mais uma capa sobre as façanhas dos ministros, estes demitiam-se na hora. Por outro lado, Cavaco nunca foi um homem de partido, com vista à criação de quadros de centro-direita e de uma corrente política e intelectual que continuasse o seu legado. Pelo contrário. Cavaco impediu o florescimento de uma política de centro-direita alicerçada em quadros de excelência. Não é por acaso que, depois do Cavaquismo, quando se temia a mexicanização do país à direita, com um domínio quase absoluto do PSD, foi o PS que logrou tornar-se o partido do regime. Porventura, isto não nos deve espantar, na medida em que, ao contrário do PSD, que nunca foi um partido verticalmente organizado, o PS tinha claramente chefes e uma elite dirigente. O PSD apenas só teve o chefe. Não é por acaso que ainda hoje se suspira por Passos Coelho, como se ele, e apenas ele, conseguisse restaurar a direita à sua glória perdida.

Onde o meu olhar sobre Cavaco Silva sofre um viés geracional é na sua relação com os media, o seu suposto autoritarismo, e, obviamente, a sua cultura. Para quem, como eu, votou pela primeira vez nas eleições de 2005 que deram a maioria absoluta a José Sócrates, os mandatos de Cavaco foram exemplares sobre vários pontos de vista. Querem exemplos? Ao contrário de muitos políticos portugueses, Cavaco nunca pôs um único processo judicial a um jornalista, apesar de ter sido alvo daquilo que, mais tarde, chamaríamos de campanhas mediáticas. Cavaco tinha ainda uma relação muito diferente com o parlamento do que aquela que os primeiro-ministros actuais têm. O motivo é simples e vem nos livros. O parlamento português passou por um processo de racionalização, isto é, de criação de instituições internas e de modelos de fiscalização que demoraram tempo a ter lugar. Tal como todos os primeiro-ministros antes dele, Cavaco ia ao parlamento nos momentos devidamente indicados no regimento. Alguém acusa o Dr. Soares de furtar-se ao debate no parlamento? Obviamente que não, nem teria qualquer sentido. No entanto, regeu-se pelas mesmíssimas regras parlamentares de Cavaco.

Deixei para último a cultura e origens sociais de Cavaco, um tema que, confesso, sempre me fascinou. O fascínio é simples. Existe uma corte lisboeta que sempre se achou superior a Cavaco Silva porque este atrevera-se a vir de Boliqueime e chegar a primeiro-ministro, lugar, que obviamente, está reservado para os lucky few que estão ungidos desde o berço para tão nobres artes. O revanchismo social contra Cavaco foi ao mesmo tempo da Direita da Lapa mas também da Esquerda do Campo Grande. Veja-se, por exemplo, António Costa ou Marcelo Rebelo de Sousa, cuja preparação intelectual e política é, sem dúvida, notável. O facto, por exemplo, de Cavaco ter ido fazer um doutoramento para York no final dos anos 60, quando a maioria dos jovens de então espalhava o seu esplendor pela Faculdade de Direito de Lisboa ou em Económicas no Quelhas, é de somenos. Mais, Cavaco é um suposto inculto no seio de uma classe política sofisticada, urbanizada e muito culta. Mas, com a excepção do Dr. Cunhal e o Dr. Soares, os protagonistas políticos de primeira linha da democracia portuguesa são francamente fracos do ponto de vista intelectual.

Olhando para tudo isto, o escriba nascido em 1986 gostaria mais de viver no país do Dr. Costa ou do Dr. Cavaco? É evidente que o país do Dr. Costa é infinitamente mais livre, mais rico, mais sofisticado e oferece, apesar de tudo, mais oportunidades do que o país do Dr. Cavaco. No entanto, há uma diferença fundamental entre estes dois países. O Dr. Costa vive do chamado crédito acumulado, daquilo que foi feito nos últimos 50 anos de democracia por outros e pelas oportunidades que a UE oferece para manter Portugal ligado à tomado. O país não está mais rico, mais livre, mais sofisticado por causa de Costa. Está-o apesar dele. Daqui a muitos anos, o Dr. Costa será pouco mais do que uma nota de rodapé na história democrática portuguesa. No país do Dr. Cavaco havia um sentimento de esperança e de possibilidades no ar que desapareceu há muito. É por causa desta ideia de esperança e construção de algo melhor que o Cavaquismo será, crescentemente, recordado com mais saudades.