Começo este artigo com um truísmo: o Hamas venceu. Aconteça o que acontecer daqui para a frente, será impossível Israel clamar vitória política e, acima de tudo, moral no Médio Oriente que emergirá depois do dia 7 de Outubro. A sua reputação sairá indelevelmente arruinada. Os amantes da opressão e do obscurantismo não tardaram a celebrar, de forma mais ou menos velada, os ataques bárbaros a que o mundo assistiu. Um pogrom como já não pensávamos ser possível. Infelizmente para os amantes da liberdade, da democracia e da modernidade, um grupo de fanáticos cujos objectivos têm pouco ou nada que ver com a causa Palestiana conseguiu desferir o golpe mais mortífero em Israel desde a sua fundação em 1948.

O mandato de Benjamin Netanyahu à frente de Israel baseava-se numa premissa e numa promessa eleitoral: Bibi era o homem que garantia a segurança interna do país, não fazendo, segundo o seu argumentário, quaisquer cedências aos Palestinianos. Para além disso, nos últimos anos, à medida que se radicalizava levando a forte polarização em Israel, Bibi tornou-se o actor político pivot na política Israelita. Sem a sua aquiescência nada é possível. Durante as enormes manifestações que se sucederam o ano passado contra a reforma do tribunal superior, que, na prática, tem uma palavra central num país onde não existe constituição escrita, Bibi conseguiu sempre sobreviver. Mesmo atolado em casos de corrupção que fariam José Sócrates corar de vergonha, as sondagens mostraram sempre que, mesmo que houvesse novas eleições, a sua coligação com a extrema-direita fanática dos ortodoxos religiosos era a única viável. Mesmo que toda a oposição moderada se juntasse, Bibi seria fatalmente o primeiro-ministro da única democracia do Médio Oriente. Ninguém sabia verdadeiramente como tirá-lo do poder.

O dia 7 de Outubro quebrou um conjunto de pressupostos da história de Israel. Em primeiro lugar, a ideia de que, apesar de viverem numa região altamente instável, os civis estavam relativamente seguros dentro do seu território, protegidos por um exército e por uns serviços secretos equipados e treinados com o melhor que o mundo tem com um alto grau de fiabilidade. Não nos enganemos. Ao longo dos anos, houve mortos civis Israelitas. No entanto, a escala do ataque de 7 de Outubro não tem precedente. Em segundo lugar, e de forma relacionada, a noção de que o assassinato de Judeus de forma sistemática e colectiva pertencia definitivamente ao passado. Assistimos já a atentados horrendos em muitas geografias do mundo. Todavia, a história milenar dos Judeus, com especial ênfase para o Holocausto, torna-os vítimas especialmente vulneráveis. Posto de forma simples: atentados anteriores, por exemplo o 11 de Setembro, não tiveram a capacidade de despertar nas suas vítimas memórias difusas de épocas passadas em que as suas famílias haviam sido perseguidas apenas por pertencerem a determinado grupo étnico-religioso.

O cenário criado com os atentados de 7 de Outubro obriga, naturalmente, Israel a responder por vários motivos. Por um lado, numa região pejada de inimigos, os quais, desde a sua fundação têm como objectivo aniquiliar o estado Judeu, Israel depende da dissuasão para a segurança. O mecanismo mais forte para manter a segurança e a estabilidade militar consiste em projectar nos inimigos a ideia de que as perdas com uma eventual retaliação serão maiores do que os ganhos obtidos com um ataque. Por outro lado, quando a poeira assentar, será indispensável que os cidadãos Israelitas ganhem novamente confiança nos serviços secretos e no exército enquanto criadores de bem-estar e de segurança interna.

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Impõe-se a pergunta, como responder? O que é uma resposta proporcional que reponha os dois objectivos de que falo no parágrafo anterior? Não sei. Penso que, na verdade, ninguém sabe, incluindo os próprios líderes Israelitas. Olhando objectivamente para a situação e para as condições de vida em Gaza, é impossível fazer um ataque militar musculado que não envolva a perda de vidas civis Palestinianas em grande escala. Liquidar o Hamas envolverá sempre grande mortandade de civis em Gaza, o que custará caro a Israel sob o ponto de vista moral e político. Em segundo, o mundo de 2023 é radicalmente diferente do mundo em que Israel enfrentou Gaza em combates terrestres. Hoje, a presença ubíqua de telemóveis com capacidade de transmitir em directo tudo o que se passar nos recantos de Gaza tornará o escrutínio do que ali se passar muito maior. Em terceiro, as opiniões públicas estão muito mais polarizadas e acicatadas do que estavam há vinte anos. Mesmo depois do 11 de Setembro e da Guerra do Iraque, nunca havíamos assistido a uma mobilização tão grande parte da opinião pública a favor da Palestina e da tragédia humanitária a que estamos a assistir.

O motivo pelo qual o Hamas já ganhou é óbvio. A guerra a que agora assistimos tem duas frentes. Na frente militar, não tenho a mais pequena dúvida de que, com maiores ou menores dificuldades, Israel sairá vencedor, pelo menos no curto prazo. Na frente da propaganda e da opinião pública, Israel já desbaratou quase todo o capital que acumulou no infame ataque. Os próprios líderes americanos afirmam que Israel tem de contra-atacar de forma proporcional e dentro das leis da guerra. Olhando para o território de Gaza, qualquer leigo percebe que isso é francamente impossível. Numa manhã, o Hamas conseguiu recolocar o conflito Palestiniano novamente no centro do debate internacional, terminou, na prática, com os Acordos de Abrãao, que permitiam a Israel emergir da sua condição de estado pária no Médio Oriente. Para além disso, com os reféns que tem a sua posse, Israelitas e Palestinianos, porque na prática todos estão reféns de um grupo de fanáticos, o Hamas terá, certamente, muitas imagens para mostrar ao mundo da crueldade que Israel inflige em Gaza.

É um dilema impossível. Os dirigentes Israelitas não podem ficar quietos porque isso significaria o fim do país tal como o conhecemos. No entanto, não é óbvio o que fazer, na medida em que, do outro lado, estão um conjunto de facções que se detestam mutuamente e as quais não podem reclamar legitimamente a representação da causa Palestiniana. Mesmo que quisessem sentar-se para discutir a paz, com quem o fariam?