O país chocou com um iceberg, está a ir ao fundo, com as pessoas atropelando-se em pânico umas às outras para saltarem para botes salva-vidas, ou já a esbracejar no mar gelado, e a nossa orquestra do Titanic, vulgo Parlamento da República, continua impávida a tocar. Mas a música não é a mesma da versão original, nem ninguém supõe que, como os músicos do navio, os músicos do Parlamento se deixem afundar para, até ao último momento, inspirarem, através da música, alguma calma aos passageiros. Enfim, pelo menos é difícil imaginá-los assim heróicos, por mais que esta vida seja cheia de surpresas.

De resto, as canções que os entretêm – a lei da eutanásia e a lei da inseminação post mortem – não são exactamente doces eflúvios sonoros para a maioria dos passageiros. Não o seriam certamente para os do original Titanic e não o são, sem dúvida, para os do novo navio, rebaptizado Portugal. Mas é verdade que uma certa concepção contemporânea da integridade da arte praticamente proíbe qualquer tentativa de agradar ao público. E os nossos proficientes deputados seguem o ar do tempo como ninguém. É provavelmente a única coisa para a qual realmente se treinaram.

E o comandante do navio, émulo do capitão Edward Smith, o nosso fiel servidor António Costa? Diz que não chocamos com iceberg nenhum, que nos conseguimos esgueirar muito bem entre dois icebergs, e que, se há vítimas, é porque houve gente que, num acto de loucura, se pôs freneticamente a saltar para a água, a bombordo e a estibordo, pela popa e pela proa, enquanto ele dirigia cautelosamente as operações, seguindo com aprumado escrúpulo a “evidência científica” que os seus oficiais recebem em código Morse do estrangeiro e dando enérgicas ordens aos mecânicos.

Não é, como se sabe, a primeira vez que ele demonstra a sua prodigiosa capacidade de imunidade à verdade e à realidade que escapa à sua consabida habilidade. Se for preciso, nem há icebergs. O aquecimento global levou-os a todos, a página dos icebergs foi definitivamente virada há uns anos atrás, é uma história da época dos dinossauros e só os descendentes dos dinossauros nela acreditam. Dinossauros esses que, como toda a gente sabe, viviam em icebergs, sempre a atacar os humanos mais incautos. Tempos que, felizmente, acabaram com ele, que, com a ajuda de alguns companheiros de armas, os exterminou, para podemos todos viver felizes e sem medo, contemplando em êxtase vacas voadoras.

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Esta imunidade à realidade e à verdade do nosso comandante é muito curiosa e devia inspirar inquéritos científicos, com direito a ajuda de dinheiros internacionais e tudo. Sugiro um ponto de partida. Damo-nos conta da realidade através de algo parecido com um choque. Não é preciso ser um choque contra um iceberg. Há choques mais modestos, mas não menos significativos: contra um vidro muito lavadinho e perfeitamente transparente, ou contra uma vontade alheia que desgraçadamente descobrimos ser independente da nossa e avessa às nossas intenções, ou com uma grande surpresa desagradável. Tudo isso é um choque, e, em relação à última experiência, até dizemos, muito apropriadamente, que ficamos chocados. A nossa vida é mesmo uma sucessão de choques: a alguns aprendemos a escapar, a outros não – nem devemos, em alguns casos. Os choques são úteis para percebermos que há limites que devemos respeitar nas nossas acções. De outro modo, os limites tratam de nós à sua maneira bruta, que nos deixa sem margem de manobra.

Dito isto, como é que o nosso comandante arranjou uma maneira de não chocar contra nada – isto é, de ser imune à realidade do choque, à verdade que o pode pôr em causa, que é o que a verdade, a malvada, nos faz de vez em quando? E uma maneira que o dispensa até de ter de se agachar “para fora da possibilidade do soco”, como o Álvaro de Campos do “Poema em linha recta”. Porque ridículo e vil ele não é. Não sofre enxovalhos e não é “cómico às criadas de hotel” nem objecto do “piscar de olhos dos moços de fretes” da oposição. Não, ele é um príncipe, um campeão em tudo. Como é que ele consegue?

Poderá parecer uma solução excessivamente simples, mas nem por isso é menos verosímil, até porque nenhuma outra é concebível. É que ele, apesar das aparências, não está lá. Nunca está lá. Não foge: não está. Pura e simplesmente, está noutro lugar, num lugar que só ele sabe. A nós, parece-nos que está, mas, se virmos bem, como alguém notou, quem está são os ministros. Esses, coitados, recebem todos os choques e, se ninguém os soca, socam-se a si mesmos. Hoje em dia, é só para isso que servem: para apanharem os socos com que a realidade o visa a ele.

Por isso, quando o nosso Titanic for mesmo ao fundo e apenas a música se ouvir, distante, e as águas geladas estiverem a engolir os últimos sobreviventes, estes terão ainda tempo para mais uma surpresa – um choque, precisamente –, quando descobrirem que ele não está lá, nunca esteve, e que o barco não tem, nunca teve, comandante. Não será a última, porque verão ainda que a orquestra navega já distante e a música vem de longe, cada vez mais longe.