1 Os populismos nacionalistas

Les Trente Glorieuses que resultaram do final da segunda guerra mundial, e que foram marcados por um forte crescimento económico no ocidente, foram seguidos de vinte anos de políticas neoliberais que amplificaram a agenda globalista. Esse período caracteriza-se pela crença num mundo cada vez mais interligado, de que resultariam vantagens económicas para todos os países e um enfraquecimento crescente das fronteiras e das entidades nacionais, e fez com que muitos acreditassem que se tinha encontrado o modelo político-económico perfeito.

Contudo, a entrada no novo século ficou marcada por momentos-chave que conduziriam à crise deste modelo: em 2001, o 11 de setembro abalaria a confiança ocidental num mundo de paz e segurança; e, pouco depois, a entrada da China na OMC provocaria impactos de grande escala na maioria dos países ocidentais (particularmente evidentes em Portugal). Em 2007, a crise imobiliária nos Estados Unidos e o colapso financeiro decorrente geraram uma crise económica que se expandiu internacionalmente e que minou a confiança popular quanto à capacidade de os estados lidarem com os problemas decorrentes de uma regulação inadequada. A adoção de políticas austeritárias em resposta à crise abriu espaço para o crescimento de movimentos populistas de esquerda: o Syriza governará na Grécia e, em Espanha, o Podemos nascerá a partir dos Indignados. Por sua vez, a crise dos refugiados na Europa permitirá o crescimento do populismo de direita a partir de 2015.

Embora fundamentem a sua crítica à agenda globalista a partir de bases diferentes, estes movimentos têm em comum uma visão antissistema: é o próprio sistema que está corrompido, pelo que a crítica é feita às instituições e à narrativa oficial e hegemónica. Quando essa crítica é feita com apelo ao elemento nacional e se traduz numa desconfiança face aos projetos supranacionais e à ideia de um mundo sem fronteiras, os movimentos são designados como populismos nacionalistas. E como se opõem à narrativa politicamente hegemónica, são percecionados como constituindo uma ameaça para as instituições vigentes.

Em Portugal, esse lugar de ameaça tem sido atribuído ao Chega e os seus membros não o devem lamentar: de facto, o Chega contesta o funcionamento do regime, desconfia das instituições e sabe que a sua narrativa está no limite do discurso considerado politicamente aceitável pelas elites. A sua ação passa por aproveitar as fragilidades do regime, apresentando-se sempre como a oposição que não receia falar e captando os votos e o apoio dos descontentes com o estado da nação. Simultaneamente, procura avançar uma agenda que, aos poucos, se tem tornado mais clara: identitária, nacionalista e conservadora. Se constitui uma ameaça ao regime? Naturalmente. Se é legítimo? Absolutamente.

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2 O perigo para as democracias liberais

Esse perigo e essa legitimidade originam tensões políticas constantes porque o discurso do Chega coloca sob pressão permanente o funcionamento do regime: é da sua natureza que o faça, como é da natureza do regime que se tente defender desse ataque. O que aconteceu na passada quinta-feira, com mais uma chamada de atenção de Augusto Santos Silva (ASS) às intervenções de André Ventura e da bancada parlamentar do Chega e a subsequente retirada desses deputados, representa esta tensão essencial: a instituição primeira do regime é confrontada com um discurso que pressiona os limites do aceitável e o seu representante institucional pressiona os limites democráticos ao repreender o deputado (como Cotrim de Figueiredo fez notar, não cabe ao Presidente da AR fazer comentário editorial ao que é dito pelos deputados).

Na verdade, esta repreensão permitiu ao Chega promover uma ação performativa eficaz: haverá melhor forma de expressar o seu desprezo pelo regime do que abandonar as bancadas do hemiciclo? Mas se a situação é proveitosa ao Chega, por que razão ASS comete continuamente o mesmo erro? (ontem António Marujo criticava os colegas jornalistas por darem tanto espaço e tempo a estes fenómenos – mas não se terá enganado no alvo?)

A razão é que o jogo do Chega interessa a ASS. Não só porque, como defende João Miguel Tavares, ASS quer aproveitar todas as oportunidades de afirmação para se lançar na corrida às presidenciais, mas também porque interessa ao PS afirmar-se como o partido que segura o cordão sanitário e que, ao segurá-lo, mantém toda a direita do outro lado.

O problema é que jogar este jogo é politicamente perigoso: porque deixamos de discutir o que verdadeiramente interessa. E o que verdadeiramente interessa ao país é que o governo conseguiu aprovar nesse debate uma proposta que altera a designada Lei dos Estrangeiros e que tem como objetivo explícito “estabelecer procedimentos que permitam atrair uma imigração regulada e integrada para o desenvolvimento do País” (quando os planos para diminuir a emigração, chamar de volta os emigrantes ou lidar com o declínio demográfico fracassaram ou são inexistentes). E apesar de a ministra Ana Catarina Mendes ter falado em consenso generalizado, todos os outros partidos foram unânimes em denunciar a aprovação apressada do diploma.

Em bom rigor, o diploma agora aprovado merece uma reflexão mais vasta. E, como quase sempre acontece, Portugal pode beneficiar do que aconteceu em outros países europeus, que vivem já as consequências de políticas de imigração demasiado amplas, e cujas reflexões levantam enormes dúvidas aos argumentos apresentados por ASS na sua intervenção.

Por um lado, o estudo de Robert Rowthorn demonstra que os argumentos económicos usados para justificar políticas amplas de imigração são frágeis (a ideia de que os imigrantes ameaçam os empregos dos nacionais pode ser exagerada, mas não é falsa; e o contributo para o rejuvenescimento da população só se mantém se o fluxo migratório for permanente, o que gera, por sua vez, problemas demográficos).

David Goodhart chama a atenção para o facto de níveis elevados de imigração corroerem a confiança social que sustenta o estado social: a nossa disponibilidade para contribuir, quer fiscalmente quer para os mecanismos de segurança social, depende de reconhecermos o outro como um de nós.

Em termos sociais, sabemos que impor mudanças rápidas e profundas a sociedades tradicionalmente coesas conduz a tensões sociais insuperáveis. Mas, como diz Robert Skydelski, “a ansiedade dos liberais para não parecerem racistas não lhes permite ver estas verdades. A explosão do que agora é chamado populismo é o resultado inevitável.”

Na verdade, já é possível sentir, em grande parte do país, esta tensão social (expressa quase sempre entredentes, por não ser politicamente aceitável) e ela não se resolve com o discurso moralista de ASS em resposta à perspetiva agressiva de André Ventura.

É nesta tensão social que reside o verdadeiro perigo para os regimes democráticos e liberais, construídos a partir do Estado-nação e assentes em identidades nacionais coesas de que depende a confiança democrática – e não nos populismos nacionalistas que se alimentam do distanciamento das elites políticas em relação à vida real.