O professor José Mattoso não foi apenas um dos maiores estudiosos da Idade Média. Foi também um dos mais decisivos participantes no debate sobre Portugal. Esse debate esmoreceu entretanto. Mas foi muito vivo na segunda metade do século XX, quando a industrialização, a emigração e a integração europeia mudaram a sociedade portuguesa, e a ditadura salazarista e o ultramar chegaram ao fim. De repente, os velhos postais turísticos deixaram de condizer com o que se via na rua. Nunca pareceu tão urgente compreender o que nos distinguia e dava sentido como país.

Não houve escritor, professor universitário ou colunista de jornal que não desse para o peditório. Ser intelectual, aí por volta de 1980, era “pensar Portugal”. E “pensar Portugal”, para demasiados contribuintes da conversa, consistia em definir uma entidade homogénea, para depois lhe vestir a casaca ideológica mais ajustada. Para uns, era a homogeneidade de Salazar; para outros, a de Afonso Costa – mas sempre homogeneidades, a que só ficavam bem censuras e polícias, mesmo quando se cantavam hinos com a palavra “liberdade”. Foi a este debate que o professor Mattoso mudou os termos de referência.

Em 1985, José Mattoso começou Identificação de um País, o seu grande ensaio sobre o Portugal medieval, pelas eleições do Portugal democrático: “A população portuguesa que olha com curiosidade os mapas publicados pelos jornais depois de cada acto eleitoral já se habituou a verificar, sem surpresa, a repartição dos votantes em dois grandes blocos, cujas fronteiras coincidem, grosso modo, com a divisória estabelecida pelas montanhas que prolongam o Sistema Central”. Esta frase, ao mesmo tempo longa e singela, representa intelectualmente uma revolução tão grande como o 25 de Abril de 1974 foi politicamente. Mattoso introduzia assim, na historiografia e no debate sobre o país, a chave que Orlando Ribeiro desenvolvera em Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico, um livro de 1945 que teve de esperar pelas eleições democráticas para ser entendido.

José Mattoso dedicou as primeiras páginas de Identificação de um País a descrever os contrastes geográficos, antropológicos, linguísticos, religiosos e sociais que distinguiam o norte e o sul em Portugal, e que explicavam porque, quando puderam votar livremente, os portugueses apareceram como “dois grandes blocos” inscritos no território: um norte que votava à direita, e um sul que votada à esquerda. A partir daqui, foi possível concluir duas coisas. Primeiro, que era um erro identificar Portugal com uma homogeneidade: o país era composto de elementos diversos, articulados entre si por “vectores de integração” – um poder político unificado ou a circulação de pessoas. Segundo, que o pluralismo político, negado por tantos regimes e projectos partidários, decorria de uma pluralidade cultural e social intrínseca à sociedade portuguesa. Por isso, a democracia pluralista era a maneira mais adequada de os portugueses coexistirem em liberdade, respeitando os direitos uns dos outros. Em Portugal, qualquer projecto político que rejeitasse o pluralismo só poderia realizar-se através da ditadura.

A partir de José Mattoso, podemos compreender como a democracia pluralista, longe de ser uma simples importação estrangeira, faz parte da história de Portugal. Desse ponto de vista, a sua obra teve um efeito até certo ponto análogo ao da obra de Alexandre Herculano, que no século XIX também associou o constitucionalismo liberal ao passado português. A história, como é óbvio, nunca salvou regimes. Mas num momento de declínio e de degradação institucional, pode justificar alguma confiança. Voltemos a ler José Mattoso.

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