Hoje sinaliza-se, a nível mundial, a luta contra o Desperdício. Falamos de um tema sensível, muito centrado no desperdício alimentar, mas com dimensões que vão muito para além deste único e intolerável desaproveitamento de recursos.

Claro que falamos dos muitos milhares de milhares de euros ou de dólares, que são literalmente deitados ao lixo. Mas mais do que isso, falamos da passividade, ao invés da indignação, com que se encara o flagelo da fome e da subnutrição que são o outro lado de um excesso que, por incúria ou falta de planeamento, se deitam ao lixo. O que sobra no lixo é o que falta nos números arrasadores da subnutrição mundial.

Os números do desperdício alimentar, mais do que impressivos, são eloquentes do muito que há a fazer nesta área. Apenas para se poder ficar com uma ideia, Portugal desperdiça, em dados de 2017, um milhão de toneladas de alimentos por ano, o que significa cerca de 100 quilos de alimentos desperdiçados por pessoa. A União Europeia desperdiça 88 milhões de toneladas. E para que se fique com a ideia do que isso significa em valor, nos Estados Unidos o desperdício alimentar ascende a 218 biliões de dólares e no mundo, a um trilião de dólares por ano.

Mas, claro, o pior cenário vem, quando analisamos prospectivamente o futuro e a forma como estamos a lidar com um crescimento demográfico imparável, versus uma escassez de recursos cada vez mais pungente.

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Como imaginar este equilíbrio em 2050, sem transmitir a ansiedade do problema ou o sentido de urgência da sua resolução?

O que falta a esta sociedade, cada vez mais projetada num discurso de proteção do ambiente, mas que não sai da fase proclamatória, nem pratica no seu quotidiano aquilo que defende às vezes com demasiada ferocidade?

Onde estão os cuidadores da natureza, os zeladores de recursos que nos escapam das mãos e do planeta todos os dias?

Será que esta passividade advém de uma convalidada crise de valores onde a ética e a responsabilidade social foram de férias, deixando apenas a face hipócrita de uma narrativa que parece servir apenas para discursos políticos de ocasião?

Julgo que está na hora de uma muito ampla consciencialização da gravidade a que chegámos no tema do Desperdício. Consciencialização que exige recursos, físicos e financeiros para que muito mais recursos, físicos e financeiros não acabem no lixo. Mas que também exige o determinado pragmatismo de quem, por despender recursos, pode e deve exigir resultados. E que, finalmente, exige políticas públicas corajosas, de estímulo sim, mas também de desabrida punição a quem não cumprir as boas práticas que muitos já sistematizaram e publicaram.

É necessário criar um movimento cultural e geracional, iniciado por um sobressalto cívico que não deve ter raiz partidária ou política, mas antes emergir de um responsável exercício de cidadania, que reclame a conciliação entre poderes privados e públicos na defesa do planeta e na preservação permanente dos seus recursos.

Neste dia 29 de setembro comemora-se, na tradição católica que é a nossa, o Dia de S. Miguel que, para além de invocar a luta contra o mal, sinaliza também o dia das colheitas em todo o reconhecimento que se faz à natureza e à sublime e maravilhosa fecundidade que lhe subjaz.

Num tempo onde tantos reivindicam freneticamente tantas coisas pueris de nenhum valor social ou cultural, fica, como na inesquecível Mensagem de Fernando Pessoa, a urgência de uma chamada, que nos conjure a todos na defesa intransigente da nossa dignidade e sobrevivência e na dignidade e sobrevivência do planeta em que vivemos.