Volta e meia dou por mim irritado porque pessoas que desprezo suscitam-me diálogos imaginados em que as convenço a reconhecer a sua falta de discernimento. Reparem: a minha irritação não é apenas aquela que estas pessoas desprezíveis me provocam no imediato; é também a de dar por mim a sentir a necessidade de as resgatar da sua burrice. Acabo numa condição duplamente patética porque, se estas pessoas já me repelem, repelo-me a mim mesmo por querer descobrir nelas algo além da sua estupidez óbvia. Detesto-me, sobretudo, quando o que é detestável nos outros pega no volante da minha imaginação.

Uma das estratégias imediatas, diante desta detestação em circuito interno, é cruzar-me menos com pessoas parvas e, assim, ficar mais desimpedido de diálogos imaginários com elas. Afinal, aborrece-me ser uma máquina automática de conversa virtual com interlocutores desprestigiantes. Na prática, estes interlocutores desprestigiantes estão mais na minha cabeça do que no dia-a-dia, o que me revela outro dilema: até que ponto é que a minha susceptibilidade a gente tola não é, bem vistas as coisas, uma tolice bastante minha? Se o que é mais desinspirador nas pessoas avança tanto dentro de mim, não serei eu mesmo o maior problema?

Lidar com a falta de discernimento dos outros é uma questão imemorial. Os antigos mais sábios, por exemplo, sugeriam que, para encarar o ridículo da humanidade, era útil um equilíbrio delicado entre convívio, confronto e conformismo. Não era conformismo no sentido de indiferença, mas certamente alguma capacidade de aceitação. É também por aqui que nos chega aquela velha oração pela serenidade, ainda célebre nos Alcoólicos Anónimos: “Senhor, ajuda-me a aceitar as coisas que não posso mudar, coragem para mudar as que posso, e sabedoria para distinguir umas das outras”. Também devo orar isto, e assim evitar ser cínico. Não quero cultivar prazer diante do desastre da estupidez colectiva.

Por outro lado, não vale a pena negar que a estupidez é parte considerável da nossa existência. O cristianismo, que guia os meus passos, é frequentemente apresentado a partir do que crê, mas não pode ser ignorado a partir do que constata. Os cristãos crêem em coisas incríveis e, aos olhos de tantos, até absurdas. Mas os cristãos, crendo nessas coisas incríveis possivelmente absurdas aos olhos de tantos, constatam inevitavelmente que o mundo é feito de muita estupidez. O arrependimento só pode ser um ponto de chegada se a estupidez for um ponto de partida (curiosamente, na casa da Família Cavaco os miúdos não podem chamar “estúpido” uns aos outros, mas sabem que esse diagnóstico espiritual está na Bíblia — a Bíblia inevitavelmente diz o que evito que os meus filhos oralizem entre si).

Sei que muitos dos diálogos imaginários em que convenço os meus oponentes da sua falta de discernimento são alimentados pela nossa absurda presunção de racionalidade. O modo como estamos inclinados a pensar que pensamos bem é uma tragédia cósmica, minha e de quem tento redimir da estultícia. Soren Kierkegaard, um dos meus santos de eleição, dizia no seu livro “O Conceito de Angústia” que “o homem não existe durante mais do que uma hora por semana”. A nossa vida é um tipo de sono com delírios de grandeza, um doente convicto de que vive o seu período áureo quando afinal se encontra em coma, ligado às máquinas. As nossas discussões são tão infindáveis porque o stock de sedação ao nosso juízo é inesgotável.

A irritação que gente tonta nos provoca participa no processo de desesperarmos, numa espiral imparável de ressentimento, hiper-sensibilidade e vingança. O Inferno também começa assim. Mas pode surgir um outro momento, preferível, feito de alguma admissão pessoal. Creio que o desprezo que justificadamente merece gente em quem a estupidez abunda é problematizado quando nós mesmos não somos tratados de acordo com a nossa. Também é por isso que a santidade — a capacidade de ser inteiro num mundo todo partidinho — não existe sem gentileza.

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