A propósito da projectada trasladação dos restos mortais de José Maria Eça de Queiroz para o Panteão Nacional, zangaram-se as comadres, tanto as da família, como as da política local, mas nem por isso se souberam as verdades.

É pena que os descendentes do escritor se tenham desavindo por este motivo, embora as zangas familiares, por questões de partilhas, tenham, pelo menos, dois mil anos, porque já Jesus foi requisitado para intervir no litígio que opunha dois irmãos que concorriam à mesma herança (Lc 12, 13). No caso do escritor, o espólio é imaterial, mas mesmo assim deu notoriedade pública à desavença familiar, o que é de lamentar. Felizmente, dos oito filhos dos meus pais, fui o único a herdar este gosto paterno pela genealogia que, embora profano, não desdiz da minha condição sacerdotal, à conta de que tanto São Mateus como São Lucas descrevem, nos respectivos evangelhos, a linhagem de Cristo (Mt 1, 1-17; Lc 3, 23-38).

Quando se fala da família de Eça de Queiroz, pensa-se sobretudo nos seus descendentes, nomeadamente os bisnetos, pois os seus netos nasceram há mais de um século e, se ainda vivesse algum filho, teria, pelo menos, 123 anos! Nada de especial, se se tiver em conta que, segundo a Bíblia, Matusalém viveu 969 anos (Gen 5, 27), embora algumas almas piedosas garantam que ninguém lhe dava mais de 800 …

Se abundam as referências aos descendentes do escritor, faltam, contudo, alusões aos seus ascendentes. Afinal, de quem descendia Eça de Queiroz? Quem eram os seus pais e avós? Os seus antepassados influenciaram a sua obra?

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São muitas perguntas para uma crónica só, mas uma breve investigação à base de dados da Geneall permite chegar a algumas conclusões curiosas, senão mesmo surpreendentes.

É sabido que José Maria nasceu em 1845, filho de mãe incógnita, não porque não se soubesse a sua identidade, mas porque essa era então a forma de encobrir uma gravidez extramatrimonial. Os pais eram solteiros quando tiveram este filho e, por isso, no seu baptismo, foi apenas registada a sua filiação paterna. Depois, o recém-nascido Eça de Queiroz foi entregue ao avô paterno, Joaquim José de Queiroz e Almeida, com quem ficou a viver. Os seus pais, que casaram em 1849, tiveram ainda mais 6 filhos.

Pela sua ascendência, sempre masculina, chega-se a um tal Domingos de Sampaio, que de Sebastiana Cardoso teve Diogo de Sampaio de Queiroz, o primeiro que, na sua ascendência por varonia, se apelidou Queiroz, quinto avô paterno do escritor. Não se estranhe que, de um Sampaio e de uma Cardoso, possa nascer um Queiroz, pois era muito comum, naquela época, assumir um apelido sem que houvesse nenhuma relação biológica com a originária estirpe homónima.

Se a ascendência paterna do escritor era burguesa, embora o seu pai, ilustre Juiz dos Tribunais da Relação e do Supremo, Deputado, Par do Reino, Fidalgo Cavaleiro da Casa Real, etc., e o seu avô, Cavaleiro da Ordem de Cristo e Comendador da Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, já pertencessem à nobreza letrada, a família materna tinha alguns pergaminhos. A mãe do romancista, Carolina Augusta Pereira de Eça, era neta de Francisco António Pereira de Eça e de Ana Franceliza Pimentel Amado Soromenho, que descendia, por via materna, de uma tal Gracia Bernarda Barbudo de Sequeira que, mesmo não sendo a mulher barbuda, bem podia ser, à conta de tão bizarro apelido, uma personagem de O Primo Basílio, ou de outro romance do seu famoso descendente.

É curioso que, pela varonia destes Pereira de Eça, se chegue a Álvaro Gonçalves Coutinho, o famoso Magriço, que foi casado com D. Isabel de Castro, de nobre linhagem. Também ele o era, porque filho de Gonçalo Vasques Coutinho, senhor do Couto de Leomil e 2º Marechal de Portugal, o qual descendia, por via sempre masculina, de Martim Vicente Coutinho, senhor do Couto de Leomil e da Honra de Fonseca! Ora, segundo notícias veiculadas pela imprensa, o principal opositor à trasladação do escritor para o Panteão Nacional é, nada mais nem nada menos, do que um Fonseca, António de seu primeiro nome! Saberá este Fonseca que se está a opor a um ilustríssimo descendente do senhor da Honra de Fonseca?! Pois é, na honra é que está a diferença entre os Fonsecas!

Por este ramo da sua ascendência, consegue-se recuar até meados do primeiro milénio da era cristã. Com efeito, a linhagem dos senhores do Couto de Leomil e Honra de Fonseca tem o seu início conhecido em Munio Viegas e Velidade Troitozendo, dois nomes que não destoariam n’A Ilustre Casa de Ramires. Por sua vez, Maior Pais, também antepassada do escritor, descendia de Pedro Turtezendes e de Toda Ermiges, mais duas personagens que parecem ter sido retiradas da árvore de costados de Gonçalo Ramires!

A dita Ermiges nasceu por volta do ano mil e era – espantem-se! – descendente de Maomé!! Portanto, se o Panteão Nacional não receber o autor d’Os Maias, pode ser dignamente sepultado na mesquita! Não se pense, contudo, que é muito excepcional esta ascendência maometana de José Maria Eça de Queiroz, pois tanto a Rainha Santa como o nosso primeiro Rei, de quem alguns estudos estatísticos dizem descender todos os portugueses actuais, descendiam do Profeta.

Da dita Ana Franceliza era bisavó, sempre por linha feminina, Micaela Rosa de Brito Zagalo, por sua vez bisneta materna de Nicolau de Morais Zagalo e de outra Micaela, também de Morais Zagalo. Ora, como é sabido, Z. Zagalo é o “escritor, ex-secretário e sócio honorário do Grémio Recreativo”, a quem o romancista atribui a autoria das memórias de Alípio Severo Abranhos, O Conde de Abranhos. Sabia o escritor que era também Zagalo, pela ascendência da sua mãe, ou a escolha deste nome, para designar o imaginário secretário do flamante Conde de Abranhos, foi mera coincidência?!

É também pela sua ascendência materna que se chega a uma tal Joana Veloso de Camões e Eça, origem do apelido que, mais do que o Queiroz da sua varonia recente, imortalizou o escritor. Sendo esta Joana filha de Paulo Veloso, que era por sua vez filho de Diogo Veloso e de Búsida Dias Campelo, não se consegue chegar ao autor de Os Lusíadas, nem ao Infante D. João, filho dos amores proibidos do Rei D. Pedro I, o cru, pela que foi Rainha depois de morta, e que é a origem dos verdadeiros Eças. Hélas!

Quanto à polémica questão sobre a ida, ou não, de Eça de Queiroz, para o Panteão, percorrendo o mesmo itinerário preconizado n’A Cidade e as Serras mas em sentido inverso, tenha-se presente que o escritor não é apenas dos seus, mas de todos nós, do país inteiro, até mesmo de todas as nações em que se fala a língua que ele tanto honrou. Nesse sentido, parece pertinente que lhe sejam dadas honras de Panteão Nacional. Que aí não ficará em boa companhia?! Ora ‘Eça’!!! E quem sabe com que companhia ele agora jaz?!

Mais importante, decerto, do que a sua genealogia, ou a sua ida, ou não, para o Panteão, importa respeitar a fé cristã em que foi baptizado, nem sempre viveu, mas em que morreu, como aliás Oliveira Martins e outros Vencidos da vida que, na feliz expressão de Monsenhor Moreira das Neves, o não foram da morte. Quando Santo Agostinho conversava com o irmão sobre o melhor lugar para sepultar a sua agonizante mãe, Santa Mónica, esta disse-lhes que isso era irrelevante, porque o único importante era que não se esquecessem de rezar por ela.

Honre-se, pois, a obra e a memória do escritor no Panteão Nacional, e unam-se os seus descendentes na oração pela sua alma, para que – por fim! – José Maria Eça de Queiroz requiescat in pace (RIP)!

P. S. Ainda sobre a anterior crónica, recebi um testemunho insuspeito de uma pessoa alheia ao Opus Dei e que é professor de Direito na Universidade de Coimbra, que tomo a liberdade de, com a sua licença, aqui reproduzir, porque responde cabalmente a quantos, ingénua ou maliciosamente, viram nessas minhas palavras uma inexistente crítica ao Papa Francisco: “Quanto ao texto que publicou sobre a relação entre a Obra e o Papa, constato uma coisa engraçada: o Padre Gonçalo, em nenhum momento, teceu qualquer crítica ao atual Papado. Sequer teceu considerações subjetivas. Pelo contrário, publicou um texto o mais objetivo possível, com um conteúdo técnico e canónico muito rigoroso. Serviu mais para explicar do que para criticar. Parece-me que as pessoas, ao lê-lo, rapidamente formularam o seu juízo crítico. A partir daí criticam o texto por, pretensamente criticar o Papa, quando na realidade são elas que, a partir de factos, formulam um juízo crítico.” Melhor dito, impossível: quem sabe, sabe; quem não sabe, inventa.