1 Passaram-se quatro meses desde a decisão irracional e tresloucada de Vladimir Putin de invadir a Ucrânia e não há nenhuma espécie de solução estrutural para a paz. O mundo mudou, regressamos a um contexto que se assemelha ao da Guerra Fria e os investimentos europeus em defesa voltaram a estar na lista de prioridades porque a incerteza (ou seja, a insegurança) é, neste momento, a única coisa que temos como certa.

Além de não conseguirmos vislumbrar o que poderá acontecer, ainda temos um problema extra: a união entre os países ocidentais no apoio militar e económico ao heróico povo ucraniano está sob pressão — e poderá mesmo estar em risco se não houver o devido cuidado da parte da União Europeia (UE).

E está em risco devido à grande arma que Vladimir Putin sempre teve desde o início da guerra: a grande dependência energética que a Alemanha, a Itália e os países do leste europeu têm do gás russo.

Como era de esperar, a Gazprom antecipou-se a eventuais sanções europeias sobre as compra de gás e já cortou na semana passada cerca de 50% dos fornecimentos que era habitual fazer nesta altura do ano a toda a Europa.

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O objetivo é simples: além de promover mais uma subida do preço (a taxa de inflação média do mundo é de cerca de 8% e um terço desse valor deve-se à energia), os russos querem impedir que as grandes economias europeias consigam subir as respetivas reservas para níveis de segurança que garantam um inverno tranquilo. Se se conseguir atingir esse objeto, seria igualmente meio caminho para a UE boicotar as compras de gás russo.

2 Em maio, a comissária europeia para a Energia fez um aviso que passou despercebido. Numa altura em que a Gazprom já tinha cortado o fornecimento à Polónia, Bulgária e Finlándia, Kadri Simson mostrou receio de que tais cortes fossem alargados a outros países, como a Alemanha e a Itália.

Simson apontou uma solução que parecia impensável para muitos europeus: o racionamento no consumo de gás e de petróleo. Tal como aconteceu na década de 70, com os choques petrolíferos.

A Alemanha já está a fazer um plano nacional do que tem de ser feito e a Itália já avançou para o racionamento com medidas, para já, simbólicas: os edifícios públicos não podem ter o ar condicionado ligado no inverno com temperaturas superiores a 19 graus e no verão com temperaturas inferires a 25 graus.

Outro tipo de medidas, nomeadamente ações mais duras de racionamento (como a fixação de um número de litro de gasolina pode ser comprada, por exemplo) ou até mesmo os controlos dos preços, poderão vir a ser implementadas.

E a grande questão reside aqui: será que as opiniões públicas europeias conseguirão aguentar tais medidas disruptivas, nomeadamente as medidas de racionamento (que poderão vir a ser muito mais abrangentes)?

Porque não existam dúvidas: Putin vai mesmo dar ordens para a Gazprom cortar o gás antes de que existam sanções específicas para o gás. Essa será uma tentativa de humilhação da Europa que Putin poderá sentir-se tentado a fazer — apesar grandes custos económicos para si porque também depende muito das receitas da venda do gás para continuar a financiar a guerra e o próprio Estado russo.

3 Dividir o mudo ocidental sempre foi o objetivo de Putin. E, às vezes, tais divisões até são fomentadas por dentro. Veja-se, por exemplo, o que diz um alto representante do Governo húngaro:

“Em Portugal, em Espanha, as pessoas não vão aceitar o facto de estarem em guerra porque estão longe demais [da Ucrânia]… De certeza que isso vai causar tensão política.”

O autor da frase chama-se Balázs Orbán e é diretor político do gabinete de Viktor Orbán — um conhecido apoiante de Vladimir Putin. O contexto das declarações ao Finantial Times foi a defesa de um acordo de cessar fogo — quase praticamente no modelo do ‘custe o que custar’.

Em Itália, as divergências já provocaram mesmo uma cisão num dos dois partidos que apoiam o Governo de Mário Draghi. O Movimento 5 Estrelas liderado por Guiseppe Conte não concorda com o apoio militar dado pela Executivo italiano à Ucrânia e tentou pressiona uma mudança de estratégia. Saiu-lhe o tiro pela culatra porque Luigi di Maio, fundador do partido e atual ministro dos Negócios Estrangeiros, manteve-se no Governo (por concordar a 100% do primeiro-ministro Draghi).

Itália, aliás, é um exemplo paradigmático dos riscos que a UE corre em termos de segurança energética, segundo dados da revista The Economist:

  • Tem de comprar 43% do seu gás à Rússia
  • Mas esse gás tem muito mais peso nas necessidades energéticas italianas (mais de 40%) do que a dependência da Alemanha face ao gás russo (só terá uma dependência de 27%, nas contas de 2020).

Nasceu, por isso, um novo chavão: a segurança energética. Ou seja, um país não pode arriscar colocar em risco o fornecimento energético às respetivas populações.

É esse o risco real que os italianos correm (como outros países europeus), se falharem as negociações que estão a decorrer com a Argélia (o único com um pipeline de ligação a Itália), Angola, Moçambique e Congo-Brazzavile para fornecimento de gás.

E quem diz a Itália, diz a Alemanha, a República Checa, a Hungria e outros países de leste da UE que necessitam de muito trabalho e apoio para lutarem com eficácia contra a dependência energética da Rússia.

4 Uma coisa é certa: a união faz a força. Foi a união que permitiu à UE lutar com muita eficiência contra uma pandemia, organizando, por exemplo, compras conjuntas de vacinas que permitiram a países mais pequenos, como Portugal, ter vacinas ao mesmo tempo que os maiores países da UE.

Essa receita pode, e deve ser, novamente usada nesta luta energética: compras integradas e distribuição do gás e de produtos petrolíferos pelos 27 países.

Mais do que isso, contudo, é a importância fundamental de os dirigentes políticos europeus tenham a coragem de falar a verdade com as respetivas opiniões públicas nacionais.

Não vale a pena esconder os factos: se a Europa não encontrar soluções adequadas para substituir uma parte importante da dependência energética da Rússia, vai ter problemas sérios durante o próximo Inverno.

É, por isso, fundamental que a UE tenha o mais depressa possível um plano de emergência para eventuais racionamentos de gás e de produtos petrolíferos.

Como disse na 6.ª feira Markus Krebber, o CEO da RWE (o maior distribuidor de gás do mercado alemão) ao Finantial Times, “é melhor discutirmos já medidas de emergência, quando ainda há algum tempo. Do que debatermos quando a casa está a arder”.

Essa é precisamente questão: estudar, debater e agir para manter uma união que tem sido claramente positiva.

Texto alterado às 13h45