1 É a ironia de uma política que se limitou a aproveitar o bom trabalho do governo anterior, a conjuntura internacional favorável e que foge das reformas como o diabo foge da cruz. Quando se tem como mantra, não resolver os “problemas estruturais” para reforçar a popularidade junto do eleitorado e manter-se no poder a todo o custo, adivinhem o que pode acontecer? Fácil: os “problemas estruturais” acumulam-se e as soluções nunca mais chegam.

Sendo certo que no caso dos sucessivos governos de António Costa, há um segundo mantra  que persiste: a culpa é sempre dos outros. Durante quatro anos, a culpa foi sempre de Passos Coelho e da troika (que os próprios socialistas chamaram). E, desde março de 2020, a origem da inação e da passividade do Executivo passou a ser da pandemia Covid-19, a que se junta, claro, a queda do Governo.

A pergunta é sincera: será que António Costa e os seus ministros sabem fazer mais do que sacudir a água do capote?

2 O “problema estrutural” dos últimos dias tem sido o encerramento dos serviços de urgência de ginecologia e obstetrícia em Lisboa, Barreiro, Almada e Braga, entre outros hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Uma grávida chegou a perder o seu filho no hospital das Caldas da Rainha — num momento em que a urgência obstétrica estava encerrada por falta de médicos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

A ministra Marta Temido admitiu no Parlamentos os “problemas estruturais” mas, lá está, sacudiu a água do capote: culpou a pandemia e as “circunstâncias que alguns provocaram” (a queda do Governo) para justificar o facto de ainda não ter encontrado soluções.

Basta puxar um pouco pela memória para perceber que Temido ofereceu ao Parlamento desculpas de ‘mau pagador’. O problema de falta de médicos (e também de enfermeiros) está devidamente identificado desde há largos anos.

3 Por exemplo, o Sindicato Independente dos Médicos alertou em novembro 2019 para a falta de três mil médicos no SNS. No mesmo mês, os dados da Administração Central dos Sistemas de Saúde revelavam que apenas 42% de um total de 13 mil médicos especialistas trabalhavam em exclusividade nos hospitais públicos. Isto é, o SNS não conseguia atrair especialistas por falta de uma proposta competitiva.

Continuemos no esforço de memória. Lembram-se quando a ministra Marta Temido, em pleno combate à pandemia, disse que os médicos do SNS tinham de ser mais resilientes — uma mudança de discurso de um Governo que alimentou a narrativa dos médicos como heróis do combate à pandemia? E que a resiliência dos clínicos tinha de ser uma condição de avaliação para a entrada de médicos para o SNS? Imagine-se que tinha sido o diabo chamado Pedro Passos Coelho a fazer estas declarações…

Além da tremenda ironia dessas declarações de novembro de 2019 terem sido proferidas a propósito de uma audição parlamentar sobre a falta de médicos no Hospital de Setúbal (aquele que está novamente na berlinda), parece que os médicos resolveram fazer um manguito à ministra e preferiram ser resilientes no setor privado da saúde ou então emigraram. Porquê? Porque mais de 2.500 médicos saíram do SNS durante os anos de pandemia por falta de condições de trabalho. E em dezembro de 2021 foram mais 400 clínicos.

Se em 2019 já havia de falta médicos, imagine-se agora…

Mais: a falta de atratividade do SNS fica ainda mais sustentada quando analisamos os concursos das especialidades para a contratação de quadros que ficam praticamente vazios, o que leva à falta de médicos. Há especialidades, como a urologia e a cirurgia cardiotorácica, em que o número de médicos no SNS em 2020 já era inferior a 2019. Ou especialidades como a cardiologia pediátrica, a neurologia, a oftalmologia e a dermatovenereologia em que o SNS praticamente não consegue atrair novos quadros.

O pior exemplo é mesmo a área da medicina familiar. Em 2021, o principal concurso tinha 435 vagas mas 188 não foram preenchidas. Recorde-se que o primeiro-ministro da “palavra dada, palavra honrada” prometeu a 22 de setembro de 2016  que “2017 é, de uma vez por todas, o ano em que todos os portugueses terão um médico de família atribuído”. Hoje muitos portugueses sabem que Costa não cumpriu a promessa.

Resumindo e concluindo: os “problemas estruturais” do SNS não se devem à pandemia nem à queda do Governo. Vêm de trás e o primeiro-ministro António Costa, que governa desde 2015, e a ministra Marta temido (que lidera a Saúde desde outubro de 2018) não conseguiram encontrar soluções. É um facto.

4 Marta Temido bem pode proclamar que tem uma “visão estratégica” para o SNS mas o único resultado que se viu da mesma é o seu preconceito primário sobre as Parcerias Público Privadas (PPP) da área da saúde — cujos contratos para gerir os hospitais de Braga, Loures e Vila Franca de Xira decidiu não renovar.

Basta dizer que Braga é um dos hospitais (agora público) que tem os serviços de ginecologia e obstetrícia encerrados parcialmente devido à falta de médicos — facto de que não há notícia que tenha acontecido sob a gestão PPP do mesmo hospital.

Mas há muito mais.

Não há dúvida alguma que as PPP do setor rodoviário têm sido duramente criticadas (e bem) e até já motivaram em dezembro de 2021 uma acusação criminal contra os ex-secretários de Estado Paulo Campos e Carlos Costa Pina. É igualmente verdade que os primeiros contratos das PPP da área da saúde, a maioria assinados pelo Governo Sócrates, motivaram críticas do Tribunal de Contas (ver auditoria de 2009).

Mas a realidade é dinâmica e o Tribunal de Contas hoje em dia faz rasgados elogios aos benefícios para o Estado das PPP da saúde, como se pode ler nesta auditoria de 2021: os hospitais PPP de Cascais, Vila Franca de Xira, Braga e Loures (os três últimos não foram renovados) pouparam pelo menos 203,3 milhões de euros ao Estado entre 2014 e 2019 e “foram genericamente mais eficientes do que a média dos hospitais de gestão pública comparáveis”.

Provavelmente, a única PPP que Marta Temido defenderá deverá ser a Parceria Público Política com Espanha. Por exemplo, na área clínica da obstetrícia, entregava-se as grávidas portuguesas ao SNS espanhol para evitar, assim, custos com privados. Dessa forma, até se conseguia logo que as crianças ficasse espanholas.

A não ser, por outro lado, que Marta Temido passe a defender ideias semelhantes às do socialista Hugo Martins (presidente da Câmara de Odivelas que defende que os médicos não podem ser aumentados no SNS), não há razão lógica para a ministra da Saúde insistir na ideia de que os hospitais têm de ter apenas e só gestão pública.

5 Certo é que outros ministros socialistas têm uma idêntica “visão estratégica” semelhante à da sua colega Marta Temido. Veja-se o caso da pasta Educação, cujo atual ministro foi secretário de Estado desde 2015.

Este ano já houve milhares de alunos sem professores. E nos próximos anos a situação só vai piorar. Cerca de 110 mil alunos do ensino obrigatório podem não ter aulas pelo menos a uma disciplina dentro de um ano. E esse número pode subir daqui a dois anos para cerca de 250 mil alunos entre o 7.º e o 12.º ano. Os dados são da diretora da prestigiada base de dados estatísticos Pordata.

E aqui a ironia é trágica: com a queda da natalidade, devia haver falta de alunos — e não falta de professores. Mas o Estado conseguiu a proeza de não planear devidamente a reforma de muitos professores, logo os mesmos não foram substituídos.

Veja-se igualmente o caos que são as chegadas de voos internacionais (fora da União Europeia) ao aeroporto de Lisboa. Centenas e, às vezes, até milhares de passageiros são barrados por falta de funcionários do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF).

Numa altura em que nem sequer se sabe como é que vai ficar o SEF — será extinto ou não? — o ministro da Administração Interna sente-se numa posição de força.

6 Marta Temido vai fazer quatro anos como ministra da Saúde em outubro de 2022. Ora, isso corresponde a um mandato completo de um ciclo governativo normal. Com a honrosa exceção de Francisca Van Dunem e pouco mais, diz a tradição política que esse é o limite máximo de duração de um ministro na mesma pasta.

Devido obviamente ao desgaste político e pessoal que tem origem numa pergunta que todos os cidadãos fazem perante este problema: se a ministra da Saúde não conseguiu resolver os problemas estruturais da sua área em quatro anos, porque razão o fará agora? Por que razão não os resolveu antes?

É verdade que tivemos quase dois anos de pandemia que concentrou todos os esforços na área da saúde mas isso é irrelevante para todas as grávidas que vão a um serviço de urgência dos hospitais de Braga ou de Lisboa e batem com o nariz na porta, porque as urgências de obstetrícia estão fechadas.

Perante problemas concretos que não são resolvidos, os cidadãos perdem rapidamente (e compreensivelmente) a memória. Será naif pensar o contrário. E se há coisa que António Costa não é, é naif.