A francesa e a portuguesa. A primeira tem um daqueles apelidos anglo-franceses impronunciáveis. A segunda gosta de sapatos caros mas tem um nome simples. Ambas são fluentes no discurso “aviação para impressionar ignorantes” e exímias na arte de omitir o que não lhes convém: Christine Ourmières-Widener não explica porque resolveu afastar Alexandra Reis e Alexandra Reis não esclarece as circunstâncias da sua passagem da TAP para a NAV. As duas obviamente detestam-se. O problema é que o rancor visceral que mutuamente destilam custa milhões aos portugueses.

O motorista. O caso do motorista que Alexandra Reis diz ter estado quase a ser despedido pela CEO da TAP sob o alegado pretexto de que este não se vacinara contra a COVID confirma que em Portugal não há grande escândalo sem um motorista como personagem. Carlos Silvino, o motorista peça-chave no processo Casa Pia, até teve direito a diminutivo: era o Bibi. Já José Sócrates valia-se de João Perna, motorista que, além de transportar o antigo primeiro-ministro, andava numa verdadeira roda viva a levar e trazer dinheiro entre os mais variados destinatários. Deste motorista do caso TAP (na verdade são dois motoristas!) ignora-se o nome, sabe-se ou presume-se que terá estado para ser afastado por ter revelado que um outro motorista da TAP terá efectuado serviços para familiares ou próximos da CEO. Seja como for os casos e os motoristas já são em número suficiente para estabelecer um conjunto de regras dos escândalos em Portugal. Regra nº 1: não há escândalo em Portugal que não tenha o seu motorista. Regra nº 2: quanto maior é a notoriedade dos políticos no centro do escândalo político maior a probabilidade de o motorista acabar acusado. Regra nº 3: a justiça é mais célere com os motoristas.

O alto funcionário do estado a que isto chegou. A  Inspeção Geral das Finanças (IGF) não ouviu a CEO da TAP porque, alegou o inspetor-chefe, ela fala inglês. Valha a verdade que quando ouve declarações em português a IGF também não percebe o que se diz e assim temos a fantástica situação da IGF não ter detectado qualquer responsabilidade do administrador financeiro (CFO) da TAP, quer pela indemnização de meio milhão de euros paga a Alexandra Reis (a que esta, segundo a IGF, não teria direito), quer pelo primeiro comunicado com informações erradas sobre a saída de Alexandra Reis para a CMVM, que assinou. Ao ouvirem-se as explicações do inspector-chefe da IGF  sobre a forma como foi conduzido o inquérito fica-se com a convicção que se está a ouvir um alto funcionário do estado. Do estado a que isto chegou.

O cineasta aeronáutico. Desde que, em 2014, começou o processo de privatização da TAP que em Portugal começou uma espécie de filme do apocalipse. Provavelmente por ser encabeçado pelo cineasta António-Pedro Vasconcelos, o movimento que contestava a privatização da TAP apresentava-se qual filme-catástrofe: “a privatização da TAP é um crime de lesa-pátria e tem de ser travada”; “Temos uma única arma que nos distingue, que nos permite ter um papel no mundo: a nossa língua, que é falada nos cinco continentes. E há dois instrumentos que Portugal tem, sem os quais não há política possível para a divulgação da língua, que são a RTP e a TAP.” O movimento contra a privatização teve manifesto e slogan: “Não TAP os olhos!” Os seus apoiantes desdobravam-se em intervenções em defesa da TAP, que era o mesmo que dizer da Pátria, pois para efeitos da defesa do estado-empresário o nacionalismo é sinónimo de progressismo. Por umas semanas António-Pedro Vasconcelos parecia ser o homem que em Portugal mais sabia de aviões.

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Nove anos e vários milhares de milhões de euros perdidos na TAP depois, o cineasta aeronáutico, mais as personalidades subscritoras do manifesto, não querem trocar umas ideias sobre quem TAPou os olhos a quem?

A secretária e a adjunta. Sempre que rebenta um escândalo político em Portugal aumenta em mim o respeito pelas classes trabalhadoras, as únicas que, sem subterfúgios, neste país, não só fazem o que se espera mas, ainda mais significativo do seu estatuto laboral, não conseguem atirar a responsabilidade para mais ninguém. O caso TAP não está a ser excepção a este meu preconceito, mas um preconceito que os factos confirmam. Assim temos ministros que não sabem de nada (o ministro das Finanças João Leão, que tinha a tutela da TAP, não sabia que Alexandra Reis colocara o lugar à disposição e desconhecia a indemnização, quanto a Fernando Medina, não só não sabia como não quis saber quando a convidou para secretária de Estado); ministros que muito a custo se vão lembrando do que fizeram (Pedro Nuno Santos que acabou a lembrar-se que afinal aprovara a indemnização a Alexandra Reis); ministros que começam por dizer que não tiveram nada a ver com o caso para depois dizerem que sim, tiveram um bocadinho  (João Galamba e Ana Catarina Mendes, no jogo do empurra sobre quem organizou a reunião secreta entre os socialistas e a CEO da TAP antes de esta ir ao parlamento) e um primeiro-ministro omisso perante este descalabro. Ora perante este exercício monumental de desresponsabilização duas pessoas fazem alguma coisa. Quem? A secretária e a adjunta, duas notabilíssimas mulheres que, lídimas descendentes de dona Filipa de Vilhena, não pegaram numa espada para armar cavaleiros mas fizeram o gesto equivalente neste destravado século XXI: elas mandaram os convites para a reunião dos socialistas com a CEO da TAP e convidaram também a CEO da TAP a estar presente nessa reunião.

Escusam os caros leitores de dizer que isso não é possível. É sim senhora. Carlos Pereira, o deputado  que estava na Comissão Parlamentar e não achou necessário avisar que estivera numa reunião dos socialistas com a CEO da TAP, disse a quem o quis ouvir que o convite “veio da secretária”. Já a adjunta dos Assuntos Parlamentares é a responsável pelo envio do link para a participação virtual da CEO da TAP na reunião com os socialistas, pois a ministra dos mesmos Assuntos Parlamentares exclui ter sido o seu ministério a convidar a CEO da TAP e João Galamba, ministro das Infraestruturas, diz que foi a CEO da TAP quem pediu para estar presente (o que João Galamba não diz é como soube a CEO da TAP dessa reunião.) Em resumo, a reunião secreta dos socialistas com a CEO da TAP na véspera de esta ir pela primeira vez ao parlamento foi uma iniciativa da secretária e da adjunta. Se ainda se fizessem fotocópias, como noutros tempos, certamente que a culpa era da menina da fotopiadora, mas assim poupamos na pegada ecológica e no número de culpadas.

O novo homem socialista.  Ele é o homem  que tenta alterar um voo comercial para agradar ao PR: “Bom dia, sei que isto é um incómodo para ti mas não podemos mesmo perder o apoio político do Presidente da República. Ele tem-nos apoiado no que diz respeito à TAP, mas se o humor dele mudar, tudo se perde. Uma frase dele contra a TAP ou o Governo e ele empurra o resto do país contra nós. Não estou a exagerar. Ele é o nosso principal aliado político, mas pode transformar-se no nosso pior pesadelo.”  Ele é o homem que fazendo tábua rasa de que a tutela da TAP é partilhada entre as Infraestruturas e as Finanças avisa a CEO da TAP “Mas Christine, outra vez: TODAS as questões relacionadas com o Governo devem ser encaminhadas através de nós. Isto já aconteceu tantas vezes que já não sabemos o que dizer. A TAP é a única empresa que se comporta assim. O MIH (Ministério das Infraestruturas e Habitação) é a única porta de entrada no Governo. Não há ligações diretas entre a TAP e outros ministérios”.

Ele é o homem que, a 28 de Junho de 2022, assina o despacho em que, num episódio de contornos pouco esclarecidos, Pedro Nuno Santos anunciava ao país a localização do novo aeroporto. Este homem é Hugo Mendes, um exemplar perfeito do novo homem socialista. Uma espécie que vive no PS e do PS e que desconhece tudo fora dessa bolha. Hugo Mendes licenciou-se e doutorou-se no sítio socialista do costume, o ISCTE. Fez ainda carreira universitária mas rapidamente inicia a carreira profissional característica das novas gerações do PS: em 2006 torna-se assessor da ministra da Educação. Em 2009, passa a adjunto do secretário de Estado Adjunto do Primeiro-Ministro. Entre 2011 e 2015, o PS não é governo mas mesmo assim Hugo Mendes não teve de enfrentar o mundo real pois torna-se assessor do Grupo Parlamentar Socialista. Quando o PS volta ao governo, Hugo Mendes é nomeado adjunto do secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares. Em 2019, está adjunto do ministro das Infraestruturas e da Habitação. Depois inicia-se nas funções de chefe do gabinete do ministro das Infraestruturas e da Habitação. Em 2020, aconteceu o inevitável: Hugo Mendes já é secretário de Estado Adjunto e das Comunicações e em 2022 secretário de Estado das Infraestruturas.

Hugo Mendes não é uma anedota. É o novo homem socialista.