Na minha opinião, em qualquer intervenção na Tapada das Necessidades, em Lisboa, deve ser seguido o triplo princípio da Conservação Máxima, Obra Equilibrada e Participação Máxima. Sem radicalismos puristas que impeçam uma intervenção correctiva do abandono de décadas, nem impulsos cimenteiros que empurrem para uma intervenção chocante, em betão e volumetria, um jardim histórico de Lisboa. Algures em permeio: anda a medida certa daquilo que deve ser a intervenção da Câmara Municipal de Lisboa na Tapada.

Também de permeio em qualquer intervenção na Tapada deve estar a presença comercial na Tapada: nenhuma intervenção deve excluí-la completamente nem entregar a Tapada ao uso comercial, descaracterizando, o seu coração simbólico e geográfico: a zona central, composta pelo antigo zoológico, torreões, estufa e relvado. É precisamente aqui que a intervenção deve ser o mais conservadora possível, restaurando todo o edificado e deixando para o uso comercial, comunitário e cívico os extremos Sul e Norte (junto às entradas), onde os edifícios da antiga escola agrícola não se revestem de nenhum interesse patrimonial especial, com excepção, talvez, do moinho que muito se ganharia em ver regressar ao seu uso original, quer em respeito ao espaço, quer como zona formativa para uma forma de vida hoje extinta em Lisboa.

Não me repugna, assim, uma intervenção na Tapada das Necessidades que restaure o património imaterial que ela representa para a cidade, mas interessa-me (muito) mais o processo, naquilo que ele tem de importante e aplicável a outras iniciativas semelhantes em escala, volumetria e importância simbólica para a cidade. E o processo tem que ser participativo: não somente na Tapada, mas nos brasões da Praça do Império, no Martim Moniz, nas ciclovias, na Portugália, no challet do Jardim da Estrela, na obra do “Programa de Renda Acessível” no Alto do Restelo, etc., etc. Imediatamente antes da fase de projecto e antes de qualquer “contrato” ou “facto consumado”, deve ser introduzida no processo uma componente de democracia participativa, que seja capaz de incorporar a posição da maioria dos moradores directamente mais afectados por uma intervenção em escala na respectiva comunidade.

E por “incorporar” quero dizer incluir em qualquer projecto de arquitectura e engenharia civil com grande impacto comunitário uma forte componente participativa que vá muito além das convencionais e, muitas vezes, apenas formais, “consultas públicas” ou “sessões de esclarecimento”. E esta forma de participação pode ser o recurso a uma das formas mais avançadas de democracia participativa: painéis aleatórios de cidadãos. Mais do que representar (Democracia Representativa) os cidadãos, a Câmara poderia participar na construção de um modelo de governação local participado e participativo (Democracia Participativa) da cidade.

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No que respeita à intervenção na Tapada das Necessidades, interessa-me assim muito mais o processo do que a intervenção de construção civil. Interessa-me que seja usada uma metodologia aberta e participada, pouco tecnocrática, uma vez que não reconheço valor democrático à demissão do papel político dos eleitos e na transferência do seu poder para “técnicos”, sejam eles arquitectos de renome ou reputados paisagistas. A cidade é de quem a habita e não de uma elite de “sábios” que pairam algumas centenas de metros acima dos comuns. Em vez de pairarem sobre a comunidade, os técnicos devem executar as decisões dos eleitos os quais, por sua vez, as devem tomar auscultando e incorporando a participação dos cidadãos e eleitores: a democracia local não é, não pode ser, uma tecnocracia e um “governo dos técnicos”.

A Câmara Municipal de Lisboa, neste processo e noutros semelhantes, deve procurar ser sempre o “fiel da balança”: o ponto central, a partir do qual se estabelecem pontes e aproximações entre posições contrárias e, frequentemente, antagónicas até a um ponto que roça o fanatismo religioso e onde florescem todos os extremismos. A Câmara Municipal deve ser o moderador entre conservacionistas extremos e betoneiros compulsivos. Não deve tomar um partido contra os outros, mas ser o moderador entre todos; a todos representando, com moderação e contenção, mas sempre tendo em vista os objectivos maiores de aumentar a sustentabilidade ambiental da cidade, recuperar e manter o património herdado e encontrar soluções que sejam do interesse directo da maior quantidade possível de moradores.

A Câmara não deve ser parte mas sim um todo numa construção democrática, onde o agregados podem ser formado por “Painéis de Cidadãos”, onde, livres de dependências e teias de interesse, cidadãos escolhidos de forma aleatória, devidamente acompanhados por especialistas e peritos, possam ajudar os decisores a tomarem as melhores decisões sobre temas concretos ou sobre as grandes orientações de política local. Uma vez que a sua selecção para estes painéis é aleatória, estes cidadãos estão livres das teias de dependência que naturalmente se desenvolvem nas organizações comunitárias ou políticas locais. Esta ferramenta participativa, contudo, não pretende substituir as formas convencionais de representação partidária (pelo menos no presente estádio de desenvolvimento da nossa democracia), mas, a prazo, tem potencialidades para se estender muito além da forma consultiva que, num primeiro momento, parece ser a mais adequada a experimentar nas nossas cidades.

A selecção dos membros destes painéis seria feita a partir do círculo de eleitores correspondente ao âmbito do processo, polémica ou questão, e esta assembleia, debruçar-se-ia sobre um tema ou decisão política muito concretos. No decurso da fase de debates, os membros deste painel chamariam também peritos ou defensores das várias opções do tema em análise, votando quando julgassem estar na posse dos elementos suficientes. O produto destas assembleias deliberativas seria uma recomendação política ao órgão executivo autárquico. De sublinhar que este “órgão deliberativo” poderia ser permanente, refrescado anualmente, por forma a permitir uma mais ampla participação e evitar a criação de lógicas de “aparelho” ou de poder paralelo.

A criação de painéis ou fóruns aleatórios nas autarquias, ao nível de bairro, freguesia ou cidade permitiria introduzir um novo patamar complementar de participação democrática, que iria complementar a representatividade “clássica” assegurada actualmente pelos partidos políticos, movimentos informais e inorgânicos de moradores e pelas associações locais, fornecendo aos técnicos e autarcas um nova ferramenta de participação activa e eficaz que poderia resolver — antes da sua erupção e captura por radicalismos ou agendas partidárias — polémicas mais ou menos embaraçosas e resolver o clássico problema da separação entre eleitos e eleitores. A eficácia destes painéis seria tanto maior quanto maiores fossem os seus poderes: mas mesmo uma aplicação simplesmente consultiva, já seria suficiente para balizar excessos e preparar os autarcas para questões ou decisões mais polémicas ou impopulares. Numa aplicação mais extensa, em que os autarcas se vinculavam previamente à execução das decisões saídas do “Painel de Cidadãos”, poderíamos ir ainda mais longe no caminho do desenvolvimento de uma democracia local verdadeiramente participada e participativa. Em todo o caso, em qualquer forma de aplicação, é minha opinião que a cidade merece, pelo menos, uma experiência deste tipo e que esta experiência pode ser feita na Tapada das Necessidades.