A matéria é árida e complexa. Mas é extraordinariamente importante para que a intervenção do Estado no sistema financeiro, seja para garantir a sua estabilidade, seja para combater uma crise, respeite critérios de conhecimento e decisão técnica e não se paute por factores discricionários, ditados pela oportunidade política do momento, por sede de poder ou porque não se gosta deste ou daquele. Abrir a porta a que o governador seja exonerado pelo Parlamento é um dos erros.

Estamos a falar da proposta do Governo de alterar o Sistema Nacional de Supervisão Financeira. É aliás irónico que o Presidente do Eurogrupo, a quem cabe liderar a equipa de ministros das Finanças para “uma coordenação estreita das políticas económicas entre os Estados‑Membros da área do euro” seja ao mesmo tempo o ministro das Finanças de um país, Portugal, que propõe medidas que levantam a possibilidade de ser estar perante uma governamentalização do banco central.

A proposta de reforma da supervisão financeira foi apresentada na quinta-feira 7 de Março pelo ministro das Finanças Mário Centeno e irá agora para o Parlamento. Os três supervisores, Banco de Portugal, Comissão de Mercados de Valores Mobiliários (CMVM) e a Autoridade de Seguros e Fundos de Pensões (ASF) são unânimes num alerta: o novo modelo aumenta a complexidade em processos de supervisão, cria maiores riscos de bloqueio e agrava os custos. Ou seja, pode ganhar-se em matéria de partilha de informação entre supervisores – uma das falhas identificada, por exemplo, no caso do BES – mas torna tudo mais complexo e caro.

O novo modelo cria uma espécie de super-supervisor, dando mais poderes ao actual Conselho Nacional de Supervisores Financeiros (CNSF) e retirando poderes ao Banco de Portugal. Este Conselho terá uma administração composta por 7 elementos: 2 de cada um dos supervisores a que se juntará um administrador executivo mas nomeado pelo Governo. É neste pilar que subsistem as maiores dúvidas, designadamente no que diz respeito à retirada de poderes ao Banco de Portugal.

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É natural que as instituições queiram manter os seus poderes. É por isso natural que cada uma das entidades critique as alterações que envolvam perda de poderes. Mas a pergunta que se deve fazer é esta: Este super-supervisor reforça a eficácia da supervisão, aumentando a probabilidade de se detectarem problemas, especialmente na banca, que não foram identificados no passado? Não. Esta parece ser a resposta de todos os supervisores. Além disso, as propostas de alteração, a crer nos alertas do Banco de Portugal, não acautelam devidamente a posição do banco central português no quadro do Mecanismo Único de Supervisão.

Além do super-supervisor, é criada uma Autoridade de Resolução e Administração de Sistemas de Garantia que ficará com o Fundo de Resolução, o Fundo de Garantia de Depósitos e o Sistema de Indemnização aos Investidores (SII). Esta entidade será administrada por cinco elementos: dois do Banco de Portugal, um da CMVM, um da ASF e um membro cooptado pelo Conselho Nacional de Supervisores Financeiros

Neste momento o Fundo de Resolução e o Fundo de Garantia de Depósitos funcionam junto do Banco de Portugal com autonomia administrativa e financeira. São liderados pelo vice-governador do Banco de Portugal, Luís Máximo dos Santos. No caso do Fundo de Resolução um, dos outros dois elementos, é nomeado pelo ministro das Finanças e o outro escolhido por consenso entre o Banco de Portugal e o ministro das Finanças. No caso do Fundo de Garantia há um elemento designado pelo ministro das Finanças e outro pela Associação Portuguesa de Bancos.  O mesmo modelo é seguido no SII: liderado por um elemento da administração da CMVM, Filomena Oliveira, integra ainda, a equipa, o vice-governador do Banco de Portugal e um membro designado pelo ministro das Finanças.

Não se pode dizer que a gestão dos fundos venha a ser mais governamentalizada, mas não se entende a vantagem da sua concentração numa nova entidade, nem a razão que leva ao desaparecimento da Associação Portuguesa de Bancos no Fundo de Garantia de Depósitos.  E há um aspecto que precisa de ser melhor clarificado: como se articula esta nova entidade com as funções que o Banco de Portugal tem, no âmbito do BCE, no Mecanismo Único de Resolução?

É na relação entre o Governo e o Banco de Portugal que a interferência política é mais visível. A questão ultrapassa a mera redução de poderes em matéria de supervisão e resolução – que pode até ser defensável quando se pensa nos conflitos que podem existir entre supervisão – que tem como principal objectivo a estabilidade financeira – e a resolução que pode, em si, gerar instabilidade financeira. É na nomeação da administração do Banco de Portugal, nos critérios da sua destituição e na fiscalização do banco central que encontramos maior interferência política e medidas que podem violar as regras de independência dos bancos centrais consagradas nos tratados fundadores da moeda única.

A proposta de lei apresentada pelo ministro das Finanças abre a porta à exoneração discricionária da administração do Banco de Portugal por recomendação da Assembleia da República ou por cisão ou fusão do Banco de Portugal. Neste último caso, bastava uma decisão do Governo de tirar uma qualquer função ao banco central ou de lhe juntar outra para fazer cair o governador.

Parece claro que a proposta, pelo menos no que ao governador diz respeito, vai contra o que está consagrado no estatuto do Sistema Europeu de Bancos Centrais no qual se consagra que o “governador só pode ser demitido das suas funções se deixar de preencher os requisitos necessários ao exercício das mesmas ou se tiver cometido falta grave”.

Há ainda um segundo aspecto que constitui uma ameaça à independência do banco central português por dar ao Governo, indirectamente, poderes de inspecção e auditoria. Isso passa-se, nomeadamente, quando se pretende dar à Inspecção Geral de Finanças, tutelada pelo Ministério das Finanças, o poder de fiscalizar o Banco de Portugal. Neste momento, o Banco de Portugal é supervisionado pelo Tribunal de Contas e por um auditor externo aprovado pelo Conselho da União Europeia mediante recomendação do BCE. É preciso envolver também o governo?

Este Governo tem mostrado, por diversas vezes, que não simpatiza com o modelo de entidades independentes que suportam as suas decisões em critérios técnicos. Tudo, naquela que parece ser a perspectiva deste Governo, deve poder ser decidido de forma discricionária em Conselho de Ministros ou pelos seus ministros. Esse não é o modelo que aceitámos implicitamente quando aderimos à União Europeia e muito menos em matéria monetária quando entrámos no euro. Embora dando aos governos maior margem, a união bancária tem seguido os mesmos princípios de independência das autoridades de supervisão. Assim se deve entender a opção dos líderes europeus de colocar o Mecanismo Único de Supervisão e o Mecanismo Único de Resolução ligados ao BCE.

O modelo de independência técnica absoluta não é positivo – somos uma democracia e não uma tecnocracia. Mas o modelo de governamentalização absoluta é igualmente bastante negativo para a democracia e o desenvolvimento económico – como aliás um país como Portugal aprendeu com a sua história, nomeadamente na ditadura.

As mudanças que se fizerem na supervisão têm de ser pautadas pelo que se aprendeu na crise – e essa reflexão continua a ser feita com mais emoção do que razão. E em nenhum momento a mudança da arquitectura da supervisão pode ser feita porque se gosta mais ou menos de um governador do Banco de Portugal. E algumas destas mudanças, agora propostas, parecem ser demasiado marcadas pela irritação que o actual governador do Banco de Portugal provoca em alguns grupos com poder hoje em Portugal. É um erro que em nada contribui para um sistema financeiro mais sólido e seguro.

Nota: O sexto prágrafo foi corrigido às 20h00 de 11 de Março de 2019 passando a ler-se “um membro cooptado pelo Conselho Nacional de Supervisores Financeiros” em vez de “…e, de novo, um membro nomeado pelo Governo”.