Marta Temido, ex-ministra da saúde aquando da pandemia Covid-19 e vice-presidente da comissão da revisão constitucional, foi ouvida no início deste mês enquanto deputada dessa mesma comissão para depor favoravelmente sobre a permissão de confinamentos obrigatórios em caso de doença grave. Como deve ter reparado iniciei esta crónica com uma frase longa, mas cheia de conteúdo. Em primeiro lugar, temos uma ex-ministra da saúde que fala de uma revisão constitucional de forma enviesada (mais preocupada com a não propagação de doenças graves que com as liberdades constitucionais) e em que esse enviesamento é descrito como positivo quando a ser algo seria negativo, porque tendencioso e redutor de um debate que, obrigatoriamente, tem de ser o mais alargado possível.

O segundo ponto deriva da falta de cultura constitucional de Marta Temido, natural em alguém que estudou saúde pública mas estranha em deputados que a devem ter, independentemente da sua formação, a partir do momento em que estão no Parlamento. Uma Constituição, antes de mais nada, consagra Direitos Fundamentais, dos quais constam os direitos, liberdades e garantias pessoais e que integram primeira parte do texto constitucional. A Constituição também define a organização económica, bem como a do poder político, mas fá-lo na perspectiva e com a intenção de melhor proteger o cidadão e, por essa razão, constam apenas da segunda e da terceira parte. A razão de ser para tal é o foco primordial se encontrar na garantia dos ditos Direitos Fundamentais, os tais direitos, liberdades e garantias pessoais, e ser este o pendor que define e conduz o tom, a intenção e razão das demais normas constitucionais. Estas existem de modo a que a organização política, económica e social não ataque nem diminua os tais direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos. Nunca foi ponderada a possibilidade de ser concedido às autoridades de qualquer tipo ou género o poder de, por si só, restringirem esses mesmos direitos, liberdades e garantias pessoais porque se o fizessem a constituição desse Estado político até pode continuar a ser a lei mais importante, mas deixa de ser uma Constituição, entendida no seu sentido estrito, de elemento constituinte de um Estado de direito. É este o legado que a história nos deixou através da tradição constitucional: tornar o Estado um protector dos direitos individuais dos cidadãos face aos poderosos. Uma conquista que não foi fácil nem isenta de sacrifícios. Pelo contrário, exigiu esforço, luta e mortes. O preço, que foi violento, não devia ser desbaratado com um sorriso nos lábios, frases bonitas e bem-intencionadas ou referência à vontade do destino e ironia da vida. É um tema sério que não pode ser tratado com ligeireza.

O artigo 27.º da Constituição Portuguesa enumera, no seu número 3, os casos em que a privação da liberdade não é consequência de sentença judicial condenatória da prática de acto que seja punido com pena de prisão ou uma aplicação judicial de medida de segurança. Estes casos são, entre outros, a detenção em flagrante delito, a prisão ou detenção de quem esteja de forma irregular em Portugal, a prisão disciplinar de militares ou a desobediência de uma decisão tomada por um tribunal. São situações de excepção graves e objectivas. O que se encontra nos projectos de revisão constitucional do PS e do PSD é a adição ao número 3 desse artigo 27.º de uma alínea j), ou seja, de mais uma possibilidade para que o direito à liberdade seja restringido sem que em consequência de sentença judicial. De acordo com as respectivas propostas, o PS propõe que se possa privar de liberdade qualquer “pessoa  portadora de doença contagiosa grave ou relativamente à qual exista fundado receio de propagação de doença ou infeção graves, determinada pela autoridade de saúde, por decisão fundamentada, pelo tempo estritamente necessário, em caso de emergência de saúde pública, com garantia de recurso urgente à autoridade judicial.” Atente-se que o recurso à autoridade judicial será posterior à ordem  da autoridade de saúde. Já a proposta do PSD estabelece a “previsão de confinamento ou internamento por razões de saúde pública de pessoa com grave doença infetocontagiosa, pelo tempo estritamente necessário, decretado ou confirmado necessariamente por autoridade judicial competente.” Atente-se que em nenhuma destas propostas de revisão constitucional se faz referência a uma pandemia. Não há um critério objectivo para a restrinção das liberdades, mas ‘fundado receio’, alusão a uma “decisão fundamentada” ou uma “grave doença infetocontagiosa”.

Nas duas propostas prevê-se a privação de liberdades decretadas por profissionais de saúde. As duas levantam várias questões sérias e objectivas, tais como: o que é uma doença contagiosa grave ou relativamente à qual existam fundados receios de propagação ou infecção graves? O que é um fundado receio? Quem o determina? Será o médico? Qual a especialidade do médico? E se houver discordância entre médicos? Quem determina a sua gravidade da doença? Quem determina a gravidade do contágio? Quem estabelece o grau dessa gravidade? Quem decide a duração do tempo de confinamento estritamente necessário? Dir-me-ão que será a lei a regulamentar uma janela que se abre, mas é precisamente para que a lei não ofenda os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos que a Constituição não pode permitir que essas janelas sejam abertas.

As questões levantadas não têm resposta, mas serão respondidas caso a caso por quem não tem o direito de o fazer: pelas autoridades de saúde que respondem a superiores hierárquicos com interesses políticos na matéria. As propostas de revisão constitucional do PS e do PSD são graves por três motivos: em primeiro lugar, limitam os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos; de seguida entrega-os às autoridades que agem sem escrutínio da sociedade porque, alegadamente, o fazem em nome da ciência; por fim, alteram profundamente o conteúdo da Constituição ao ponto de desvirtuarem o seu espírito e objectivo último. Porque uma Constituição que não protege cidadãos de um poder que limita liberdades de forma discricionária até pode continuar a ser um texto com muito importância na hierarquia das leis, mas deixa de ser uma verdadeira Constituição política.

O assunto pode parecer distante e algo esotérico mas, caso nada seja feito em contrário, tornar-se-á numa ameaça quando um de nós receber ordem para ficar em casa porque alguém entende que constituímos “um fundado receio que propagação” de uma doença. Nesse dia em que faltarmos ao trabalho, em que não podermos levar os nossos filhos à escola, em que não podermos estar com os nossos pais ou avós ou netos, nesse dia em que um delegado de saúde que não conhece a nossa história clínica decidir sobre a nossa liberdade mais imediata e básica, nesse dia, o assunto torna-se premente, mas terá o aval constitucional.

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