Fui desafiado pelo Carlos Vaz Marques para trocarmos umas ideias com a Raquel Vaz Pinto sobre Vladimir Putin e Xi Jinping, a pretexto de dois livros que recomendo para quem quiser perceber melhor a suas ações a partir de algumas das ideias perigosas que os inspiraram. Partilho aqui algumas das minhas conclusões, somando Erdogan e com direito a Salazar de permeio.

Os iliberais

Recep Erdogan domina a política turca desde 2003 e foi reeleito presidente esta semana. A Turquia não é (ainda) um regime autoritário como a Rússia ou a China. Mas o facto de ter tido a sua vitória eleitoral mais apertada em duas décadas pode significar que para lá caminhará. O fenómeno híbrido das democracias iliberais – não inteiramente autoritárias, mas com a tendência para um pluralismo cada vez mais limitado – tem ganho um peso crescente. O padrão nestes casos, da Venezuela chavista até à Rússia putinista, tem sido: quanto mais difícil se torna ao líder ganhar eleições, mais aposta na repressão para manter o poder. Isso tem sido facilitado por um contexto global em que as potências democráticas liberais perdem peso face a autocracias como a China. A Freedom House faz relatórios anuais sobre o estado da democracia pluralista. No de 2022 destacou precisamente a expansão global do autoritarismo. E estimou em apenas 20% a população global que atualmente vive em Estados plenamente livres.

É verdade que a China ainda não é, e até pode não vir a ser tão poderosa como os EUA. Mas já é a segunda maior economia com um forte impacto global, oferecendo alternativas ao Ocidente sem qualquer condicionalismo democrático. A Rússia tem o maior arsenal nuclear e é o maior país do Mundo, não hesitando em apoiar militarmente os regimes mais brutais. Mesmo em decadência, sobretudo em crise, pode ter um enorme impacto negativo. A Turquia uma potência média, é ponte ou barreira geoestratégica entre o Médio Oriente e a Europa, e controla o acesso ao Mar Negro, de importância vital com a invasão russa da Ucrânia. Sobretudo estes líderes, ao contrário do Presidente Biden, têm poucos limites à forma como lideram os seus países. Putin e Xi acabaram com os limites de mandatos que os impediam de se manter no poder, Erdogan pode seguir o exemplo.

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Há três características fundamentais que unem Putin, Xi e Erdogan: nacionalismo, neoimperialismo e revisionismo. Elas remetem para um traço comum nas respetivas biografias e visões do Mundo: sentem-se órfãos de grandes impérios caídos, culpam o Ocidente por isso, querem liderar a sua restauração, o que legitima o recurso a todos os meios.

O nacionalismo de Salazar a Putin

Estes líderes querem fazer dos seus países novamente grandes potências. Para isso consideram indispensável recuperar a identidade tradicional, as crenças que teriam feito a grandeza dos seus países. Isto passa pela promoção reacionária da Ortodoxia na Rússia e do Islão sunita na Turquia. No caso de Putin, um dos seus pensadores preferidos é o tradicionalista Ivan Ilyin (1883-1954). Este inimigo jurado dos bolcheviques, primeiro viveu exilado na Alemanha, onde se associou aos nazis, com os quais acabou por romper, acabando exilado na Suíça a tecer elogios a Franco e a Salazar, com quem partilhava as dúvidas sobre os EUA. Duvido que isto leve alguma esquerda radical portuguesa obsessivamente antiamericana a repensar a sua colagem à propaganda de guerra putinista, mas devia.

No caso da China comunista a questão é um pouco mais complicada, e passa pela recuperação da crença comunista no partido como vanguarda dona da verdade. Xi encarna na sua imagem e na sua retórica um neo-maoismo, em que se usam apps em vez do Livrinho Vermelho para impor a cartilha partidária. Passa também pelo “recrutamento” da grande referência do pensamento chinês tradicional – Confúcio –, reinterpretando as suas máximas para alinhar este novo/velho camarada com o Partido-Estado.

Neoimperialismos iliberais, o que fazer?

Estes Estados foram durante muitos séculos o centro de vastos impérios esclavagistas e expansionistas, um facto ignorado pela história politicamente correta e obsessivamente ocidentalista da moda pelos nossos lados. Todos eles continuam a ser estados multiétnicos, embora com uma etnia numericamente dominante. As numerosas minorias étnicas frequentemente predominam e ameaçam a legitimidade do controlo de zonas fronteiriças de grande importância geoestratégica. É assim com os curdos no leste da Turquia. É assim com os chechenos no Cáucaso russo. É assim com os uigures no extremo ocidente chinês, o Xinjiang. As elites dominantes nos três casos abraçam esse passado imperial e apostam na narrativa de que a grandeza nacional passa pelo regresso a um poder central forte. A alternativa seria entre autocracia e anarquia. O grande mal a evitar seria o surgimento de um liberalizador, um novo Gorbatchev.

Mais do que liderando potências emergentes, estes líderes vêm-se como devendo recuperar o seu tradicional e “legítimo” estatuto de grande potência, com “direito” a impor a sua hegemonia na vizinhança. É normal que grandes potências emergentes sejam revisionistas da ordem internacional que encontram, procurando uma revisão que reflita melhor o seu novo peso, nomeadamente na sua vizinhança. Mas as regras mudaram desde 1945, acabou o direito de conquista. Isso pode dificultar a vida às grandes potências com ambições, mas para o resto da humanidade é uma garantia de maior segurança.

Não é de estranhar que estas potências queiram minar a ordem global dominada pelos EUA. E haverá muitos que acham que se é contra os americanos, é ótimo. E sim, os EUA cometeram muitos excessos e erros, fizeram muitos compromissos questionáveis ao longo da sua história. Mas não nos devemos iludir, tendo em conta o atual equilíbrio de poder, este revisionismo é liderado pela China – por exemplo, através da Organização de Cooperação de Xangai ou dos BRICS. E Pequim está determinado a criar um Mundo mais seguro para os autocratas.

O que pode a Europa fazer? Podemos pouco, não temos suficiente coesão ou peso global. Podemos mais em conjunto com os EUA. Mas a comunidade transatlântica de democracias liberais está longe de estar garantida, sobretudo com Trump novamente à espreita – um iliberal, admirador confesso de Putin e Erdogan. Já não estamos na década de 1990, e devemos enfrentar essa realidade. Não devemos elogiar eleições falsificadas para nos facilitar a vida. Também não devemos abraçar uma retórica intransigente, porém sem eficácia, como na Venezuela ou na Síria. Mais vale assumir que é impossível hostilizar permanentemente Estados relevantes e que não podemos reduzir toda a nossa ação externa à promoção da democracia. Até porque uma verdadeira democracia pluralista tem de ganhar raízes no próprio país, não pode ser imposta de fora. Podemos reservar uma cooperação mais intensa para países com valores convergentes, mas apostar pragmaticamente em relações económicas e estratégicas com os restantes. A política internacional, sobretudo em tempo de guerra e crescente competição entre grandes potências, frequentemente não oferece boas opções, apenas males menores. Os estados europeus, como todos os outros, têm cometido erros ao longo da sua história. Mas vivemos na região mais próspera e mais livre do Mundo. Devemos, pelo menos, tentar preservar isso, porque também há autocratas em potência entre nós. Dividir-nos seria um erro potencialmente fatal perante novas autocracias, mais poderosas, mas não invencíveis.