Hoje em dia quase todos os países do Mundo dizem ser democracias. A regra quase universal da política contemporânea é que o poder legítimo deve resultar da escolha do povo. Há dois séculos a regra era a legitimação política pela Providência Divina, como ainda hoje é o caso da Arábia Saudita ou do Papado. Qual é o papel das eleições nesta legitimação democrática? Claramente são importantes, a ponto de até os regimes mais repressivos e autoritários se darem ao trabalho de as organizar. Democracia quer dizer poder do povo, é vago. O entendimento do termo que se foi consolidando nos últimos dois séculos no Ocidente é bem mais específico, e vai muito para além da simples realização de eleições, sobretudo no sentido de garantir condições de efetiva escolha e de verdadeiro pluralismo e liberdade. Se eleições bastassem para termos uma verdadeira democracia, desde o regime nazi até à Coreia do Norte muitas ditaduras o seriam. A maioria dos regimes do mundo são democracias formais, mas não são regimes realmente livres e pluralistas de acordo com a Freedom House. É este ponto crucial que nos leva às eleições recentes no Brasil e nos EUA, e também as que aí vêm no nosso Partido Comunista.

O sistema de candidato único num partido único

Foi conhecido nestes dias o nome do candidato único proposto pelo topo da nomenclatura comunista nacional às funções de Secretário-Geral. Paulo Raimundo é desconhecido do grande público, como admitiu, sinceramente, o seu simpático antecessor Jerónimo de Sousa. Não é de estranhar dada a natureza do processo de seleção. Desde o fim da clandestinidade, em plena democracia, nunca houve mais do que um candidato à liderança do PCP. Portanto, este facto não é um acidente. Este sistema, com décadas, honra seja feita ao PCP, não é algo clandestino. Está muito claro nos estatutos públicos do partido que o seu funcionamento interno é regido pelo chamado centralismo democrático, que é logicamente o oposto do pluralismo democrático.

O que é mais irónico em todo este debate foi ver defensores do PCP aparentemente a querer defender o partido dele próprio, da sua história e até da sua declarada (também nos estatutos) ideologia marxista-leninista cujo desprezo pela democracia apelidada de burguesa e defesa da ditadura do proletariado e múltiplos regimes repressivos por todo o Mundo são bem conhecidos. Eu levo o PCP mais a sério, bem como a afirmação muito clara nos ditos estatutos de que não é um partido como os outros, reclamando ser “a vanguarda dos operários e de todos os trabalhadores”.

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Não faltaram os que vieram com a velha história de que devíamos estar em silêncio respeitoso porque devemos a nossa liberdade ao PCP, quando devia ser evidente que o dever de silêncio face a um partido é o oposto da liberdade de expressão. Mais, um direito natural e universal, por definição, não se deve a ninguém, é-nos devido a todos. Não sou anticomunista, não me defino, nem aceito que me definam, pela minha crítica ocasional ao PCP, mas gosto do rigor na análise. Por isso, não nego o papel do PCP na defesa dos direitos dos trabalhadores ou no combate ao autoritarismo salazarista. Mas Estaline também combateu a autocracia dos czares e Khomeini o autoritarismo do regime do xá e isso não fez deles democratas. Combater uma ditadura ou defender a existência de sindicatos é uma coisa, ajudar a construir uma democracia ou um sindicalismo pluralista são outra bem diferente, como Mário Soares explicou num famoso debate com Álvaro Cunhal, em novembro de 1975.

Houve ainda quem tenha alegado que a eleição no PCP é feita nos termos do regulamento do partido e, portanto, da lei, e, por isso, ninguém tem nada a ver com isso. Claro que não estou a defender que esta eleição no PCP seja ilegal ou inconstitucional, apenas noto que é uma escolha opaca, sem debate prévio, sem pluralismo de escolha e sem escrutínio público, o que revela o deficit de cultura democrática e efetivo pluralismo no PCP. O argumento de que só os comunistas podem ou devem falar sobre o que se passa no PCP é mais um disparate e mais um exemplo de que se reclama para o dito um estatuto antidemocrático de exceção. Apesar de tudo, precisamente em nome do pluralismo nas lideranças políticas portuguesa, valorizo o facto de Paulo Raimundo não ser mais um jurista da Universidade de Lisboa, embora de operário tenha pouco tempo de serviço e de funcionário partidário tenha muito mais.

As eleições no Brasil e no EUA e os riscos para a democracia

É estranho que as mesmas correntes de opinião que defenderam indignadas que é indiscutível que o PCP e o seu sistema de candidatos únicos são inquestionavelmente democráticos, não hesitaram em afirmar que a democracia está ou esteve em perigo, ou até já nem existia, seja no Brasil de Temer e Bolsonaro, seja nos EUA de Trump. Se haver eleições regulares nos termos na lei é a única coisa que é necessária para existir uma democracia qual o problema nesses casos?

Uma democracia pluralista não vive só de leis e de normas escritas, e não pode sobreviver sem normas e práticas informais não menos relevantes. É por isso que é tão importante esta dimensão de uma cultura democrática pluralista. Não há norma mais central numa verdadeira democracia pluralista do que a da alternância (pacífica) no poder de diferentes partidos ou grupos. Mas nenhuma constituição pode impor esse pluralismo prático e efetivo, apenas o pode permitir. Uma verdadeira democracia tem de ser efetivamente pluralista e isso implica, em suma, a real existência de múltiplas opções e de verdadeiras alternativas.

É isso que Donald Trump vem procurando colocar em causa, para ele as eleições só são legítimas como instrumento para sua ascensão e manutenção no poder. Trump é um populista iliberal que não aceita limites ao seu exercício do poder no que alega ser a defesa dos verdadeiros interesses do povo norte-americano, vê-se como uma espécie de vanguarda popular inatacável. Foi esse o modelo que Jair Bolsonaro ameaçou seguir no Brasil, embora, para já, não tenha ido tão longe como Trump. O mesmo poderíamos dizer de Maduro na Venezuela ou de Putin na Rússia. Achar que apenas leis e regulamentos bastam para travar este tipo de ameaças a uma democracia pluralista seria não perceber a sua verdadeira natureza e, portanto, sermos incapazes de a defender eficazmente. Até percebo que, por razões pragmáticas, se tenha de lidar com países (e partidos) que não são verdadeiramente democráticos, mas devemos à democracia não nos iludirmos a esse respeito e estabelecer limites a essa cooperação.