Não há artigo sobre a Grécia, ou a crise dos imigrantes em Itália que não acabe com críticas e ataques aos líderes europeus. Invariavelmente, são “egoístas”, “fracos”, “populistas”, e “não entendem a ideia de solidariedade europeia”. Há várias razões para explicar o tom crítico. Desde logo, em Portugal, a maioria dos cronistas acredita que o seu papel é atacar o poder e os governos. Se não o fizerem sentem-se como aqueles avançados que chegam ao fim do jogo e não marcaram um golo. Escrever em público exige atacar os líderes políticos, e quem não o faz ou, pior, comete o pecado de defender o governo “está ao serviço do poder” ou “quer um tacho” (normalmente, as críticas dizem muito sobre quem as faz). Em Portugal, quase toda a gente que escreve em público tem o pavor de ser acusado de estar aliado ao poder.

Em segundo lugar, a “Europa” deixou de enviar “envelopes de dinheiro” e agora exige que se respeitem as regras que todos assinaram. A “solidariedade” significa apenas dar dinheiro. Mas nunca o respeito pelas regras que acordamos com os nossos parceiros. Curiosamente, a maioria dos que atacam agora a Europa, defendeu o Tratado de Maastricht e a entrada de Portugal no Euro. Será que leram os Tratados com atenção? Será que refletiram devidamente nas consequências do que defenderam? Será que consideraram a importância de se respeitar as regras acordadas e assinadas? Alguém obrigou Portugal a aderir ao Euro? Ou achavam que as regras eram irrelevantes? Sei muito bem que a Alemanha e a França foram dos primeiros a violar as regras do Euro. Na altura, critiquei os governos de Schroeder e de Chirac (mais do que uma vez e por várias razões). Mas outros, que passam agora a vida a criticar Merkel, mantiveram-se calados perante os abusos franco-alemães.

A Europa está a pagar um preço muito elevado por erros cometidos durante a década de 1990. Mas quase ninguém gosta de falar disso. Pelo contrário, a narrativa politicamente correta elogia o suposto “europeísmo” de Kohl, Mitterrand e Delors. Esse “europeísmo” não foi mais do que defender os interesses nacionais da Alemanha e da França, no caso dos dois primeiros, e dos dois países, no caso do último. Num momento de enorme franqueza, um dia um velho funcionário da Comissão Europeia (daqueles que nunca perdeu a lucidez apesar de décadas em Bruxelas) disse-me: “O sucesso e a popularidade de Delors resultou de três princípios: no essencial, fazer sempre o que Paris e Bona (depois Berlim) queriam: atacar o Reino Unido e enviar dinheiro para os países do sul da Europa.”

Entendo perfeitamente que Kohl e Mitterrand tenham defendido os interesses da Alemanha e da França, não esperaria outra coisa, nem os critico por isso. Além do mais, enfrentaram um desafio geopolítico tremendo: a reunificação da Alemanha; o acontecimento mais importante da História europeia desde 1945. O problema foi o modo como permitiram – e de certo modo ajudaram – que se transformasse a integração europeia numa ideologia política, senão mesmo numa utopia.

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Essa utopia europeia assentou num idealismo quase ilimitado, em que tudo parecia possível na Europa. Não havia limites às despesas com políticas sociais, para satisfazer eleitorados; e não foi só na Grécia; foi também na Alemanha, na Suécia, em França, no Reino Unido, enfim em toda a Europa. Em privado, muitos sabiam que a situação era insustentável, mas nunca quiseram dizer ao eleitorado a quem tinham que fazer promessas de quatro em quatro anos. No plano externo, a Europa seria capaz de quase tudo, desde democratizar a Rússia, “ocidentalizar” a Turquia e acabar com a “hegemonia” dos Estados Unidos.

Este triunfalismo europeu retirou lucidez aos líderes políticos, sentido da história, e humildade perante a realidade (o que é extraordinário para políticos com a história de Kohl e de Mitterrand). Quando se passa quase duas décadas a ignorar a realidade, ela explode com fúria. Em 2010, as contradições económicas, sociais e políticas explodiram na Europa.

A crença no progresso inevitável da integração europeia foi o segundo grande pecado da utopia construída na década de 90. Foi resumida por uma das frases mais infelizes alguma vez dita por um político: a “Europa é como uma bicicleta; se parar, cai” (Kohl). A ideia de que só há um caminho – “an ever closer Union” – contribuiu, e muito, para os problemas de legitimidade política que a União Europeia hoje enfrenta.

Na história e na política, nada é inevitável. A União Europeia e o Euro podem acabar. Continuo a achar que seria uma tragédia para a Europa se isso acontecesse. Mas a “tese da bicicleta” chegou ao fim, deixou de ser válida e legitima. A Europa perdeu o poder económico e político necessários para se definir a si própria como o “destino da história.” A União Europeia terá que ser mais realista e consciente dos limites do seu poder. E a loucura da corrida em frente até ao “fim da história”, como mostra a assinatura de quatro Tratados entre 1992 e 2003 (QUATRO TRATADOS), acabou.

Ao contrário da maioria dos cronistas portugueses, respeito e admiro o esforço de muitos dos atuais líderes europeus. Herdaram uma utopia política que não resistiu ao teste da realidade. Gostariam de ter outros assuntos para discutir e resolver? Claro que gostariam. Têm outra opção? Claro que não. São culpados pelas ilusões acumuladas durante duas décadas? Obviamente que não. Mitterrand dizia que “era necessário dar tempo ao tempo.” O tempo chegou.