Há uma impressão errada da filosofia, a de que ela se encontra radicalmente divorciada da experiência comum. Mas algum conhecimento da boa filosofia, que pode encontrar-se praticamente em todas as escolas de pensamento, mostra exactamente o contrário. De resto, perceber um filósofo é não só entender a sua maneira de pensar, ao ponto de, face a um texto dele nunca lido, podermos, quase a partir das primeiras linhas, antecipar o caminho do seu pensamento, como igualmente capturar o modo como as suas doutrinas reenviam, de modo sem dúvida indirecto, para uma experiência comum partilhada. Isto, por mais abstracta ou idiossincrática que seja a linguagem. Espinosa ou Leibniz, por exemplo, não escapam a esta regra geral.

A luz indirecta que a filosofia lança sobre a experiência comum visa, antes de tudo, torná-la inteligível. A questão da inteligibilidade – do sentido, da compreensibilidade – é, ao fim e ao cabo, a questão única e central da filosofia, que ela aplica aos vários objectos da experiência. Não há outra disciplina que a tenha por questão quase exclusiva, embora, é claro, nenhuma disciplina se possa privar dela na sua elucidação do real. É verdade que os grandes sistemas filosóficos, que ambicionam uma elucidação sem falhas do real, tendem declaradamente a não deixar espaço para a vasta região de sem-sentido que é constitutiva da experiência humana e de que a contingência e a morte são talvez as duas figuras mais exemplares. Mas trata-se de um gesto radical. Muita filosofia, da melhor, não busca constituir-se como um sistema, embora não possa certamente abdicar da exigência de sistematicidade, que é quase um aspecto da sua ética.

Isto vem a propósito de um dos últimos livros de Fernando Gil. Passarão dez anos em 2016 sobre a sua morte, e lembrar a sua obra, uma obra de uma extraordinária riqueza e profundidade, é uma tarefa que deve ser levada a cabo. Não que ela se encontre esquecida nos círculos de especialistas, nomeadamente em França e Portugal (ensinou em ambos os países, bem como nos Estados Unidos). Pelo contrário: sairá em breve em França uma obra colectiva destinada à análise da sua filosofia e vários volumes sobre ela foram já publicados entre nós. Mas era bom que aqueles que procuram uma opinião informada sobre um certo número de questões tivessem acesso a ela.

O livro a que me referi chama-se A Convicção. A tradução portuguesa, a partir do original francês publicado em 2000, foi editada em 2003. E é um dos livros onde verdadeiramente se pode verificar essa continuidade entre uma construção filosófica e a experiência comum a que me referi no primeiro parágrafo. Um dos objectivos principais do livro é elucidar as relações existentes entre os conceitos de crença e de convicção. Nada, aparentemente, mais abstracto. Mas esse carácter abstracto não impede, antes pede, o estabelecimento de laços com a experiência humana partilhada. O livro dá-a a ver e permite uma sua melhor compreensão. Ao modo da filosofia, é claro, e longe de qualquer garridice típica de uma certa mistura de géneros que as modas apreciam. Mas dá-a realmente a ver.

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O que nos diz Fernando Gil? Diz-nos que a crença, por mais forte que seja, nos permite apenas uma inteligibilidade difusa dos objectos sobre os quais incide. De um certo modo, ela encontra-se afectada de passividade: vem de fora, é algo de recebido sem elaboração própria – em linguagem filosófica, sem apropriação efectiva dos seus conteúdos. Não há, na crença, nenhum movimento que nos conduza a uma intuição real. Somos naturalmente crentes – a crença é uma disposição arcaica -, mas a crença não se consegue arrancar a uma indeterminação que faz parte dela. A convicção, pelo contrário, supõe a actividade do sujeito, uma actividade que, idealmente, nos deve conduzir a uma intuição efectiva. O sujeito constrói os seus objectos, de modo a, na medida do possível, os tornar inteligíveis, compreensíveis.

O que supõe, obviamente, um esforço na sua apropriação destes, uma análise das operações que nos fazem pensar o que pensamos. A partilha da convicção não só é possível como oferece condições para uma avaliação da sua justeza. A partilha da crença, pelo contrário, não fornece indicação alguma para a sua avaliação. Limita-se a contaminar. À sua maneira, a convicção respeita à verdade, a crença à ideologia. Mas, ponto importante, a ideologia é, num certo sentido, inescapável. A convicção não pode ser nunca inteiramente transparente ao sujeito. O que não significa que se confunda com a crença. Mas a compulsão a acreditar que habita o espírito humano infiltra-a necessariamente.

É isto abstracto? Sem dúvida. Mas a nossa vida quotidiana, nos seus vários aspectos, apresenta imagens sensíveis destas distinções e das relações que se estabelecem entre crença e convicção. É diferente saber porque julgamos algo verdadeiro, e reflectir sobre as razões que nos levam a pensar assim, e crer por hábito ou por inclinação ou por interesse ou por obrigação social. Sem entrar em matérias políticas, onde a distinção é obviamente aplicável, basta pensar na literatura quotidiana que os media nos oferecem sobre “o que faz bem” e “o que faz mal” à nossa saúde. As variações, para um grande número de produtos, são quase diárias. E as pessoas acreditam, sem se preocuparem grandemente nem com a mutabilidade das crenças nem com a sua justificação.

A mesma coisa aplica-se também aos juízos de gosto. Há êxtases literários, musicais ou outros que são manifestamente da ordem da crença e não da convicção. Isto é: não remetem para nenhuma intuição própria. Pessoalmente, já assisti a alguns verdadeiramente impressionantes, que duraram o que duraram, até virem outros a seguir. Não é preciso, parece-me, continuar com exemplos de outras províncias do dia-a-dia. Mas, se se quiser, pense-se nas controvérsias sobre o carácter antropogénico das alterações do clima: são, sob muitos aspectos, um exemplo de eleição.

E é claro que, na vida quotidiana, a parcial infiltração da convicção pela crença é em larga medida inevitável. Até porque as sociedades só podem funcionar se existir um princípio de credulidade que forneça um elo que ligue os seus elementos. Mas aqui seria necessário introduzir uma outra questão, à qual Fernando Gil também se dedicou: a da confiança. Também aí o que diz a sua filosofia remete para a nossa experiência quotidiana e permite lançar alguma luz sobre ela.