Sigmund Freud teorizou sobre a trilogia que nos torna humanos, a psique. O que somos ou fazemos resulta de três ‘sujeitos’ muito diferentes que vivem em disputas permanentes na cabeça de cada um de nós. O ‘id’ vive dos instintos, dominado pelo princípio do prazer, é o nosso lado primário, selvagem. O ‘ego’ vive orientado pelo princípio da realidade, obrigado a decidir as disputas entre os seus dois parceiros e os equilíbrios que existem no mundo fora da cabeça, pelo que corresponde ao que exteriorizamos quando agimos ou abstemos de agir. Por último, o ‘superego’ é o polícia do espírito que impõe, sem contemplações, a moral e, desse modo, obriga os outros dois a respeitar sempre os valores supremos da condição humana, como o respeito pela vida, o amor ao próximo ou a prática do Bem e da Justiça.

Um ‘superego’  civilizado do século XXI é o que impõe aos seus parceiros – ‘id’ e ‘ego’ – o dever moral da cooperação para o desenvolvimento, a ajuda a pessoas, comunidades ou povos necessitados. Nem admite discussões porque todos sabem que da porta de sua casa aos antípodas, aos lugares do outro lado do mundo, existem pessoas com condições de vida que oscilam entre a abundância e a pobreza extrema; a segurança e a exposição a todo o tipo de ameaças; a saúde e a doença; o conforto de uma família, amigos e colegas e a mais profunda e humilhante solidão; a realização quotidiana de ambições pessoais e o esbarrar com frustrações a cada nascer do sol.

Se o ponto de partida da relação com a cooperação para o desenvolvimento for, em vez do ‘superego’, o nosso primário ‘id’, o que vive do prazer egoísta nas cavernas da satisfação dos instintos seremos tentados à fuga aos dilemas que o quotidiano atravessa na condição humana. Umas vezes o sofrimento dos outros passar-nos-á ao lado. Não o veremos. Outras vezes veremos desgraças por todo o lado, mas apenas com o propósito de jogar culpas e responsabilidades para os outros. Se estivermos do lado mau ou remediado, culparemos os que estiverem do lado bom. Se estivermos do lado bom, pensaremos e/ou diremos que são os outros que não se esforçam, não trabalham, não querem. Dominados por instintos primários, preparamos o caminho para o conflito estéril, para o despeito, insegurança, criminalidade, violência social, destruição.

Fica, por isso, clara a tarefa dificílima do ‘ego’. Coloque-se no seu lugar, caro leitor. Todos os dias. Veja-se como aquele que tem de decidir. Para isso assuma que não tem legitimidade para escapar a obrigações de cooperar para o desenvolvimento. Assuma o dever humano de ajudar a corrigir injustiças onde quer que existam. Todavia, assuma também que tão pesada missão força-o a respeitar o princípio da realidade. É o que o impede de prometer ou dar aos outros o que não tem. É o que o impede de atentar contra si mesmo e os seus. É o que o impede de dar por dar. É o que o impede de dar o que não deve dar. Cooperar é dar e receber, exigir se for necessário. É o que transforma a cooperação numa forma sublime de respeito pela condição humana.

Contudo, a carga sublime esvazia-se quando os outros, os beneficiários, persistem em não valorizar e em não respeitar a cooperação que exige sacrifício a quem o ‘superego’ a impôs. E ninguém é culpado por nascer pobre ou viver num país pobre. Porém, nascer rico ou viver no primeiro mundo também não transforma os indivíduos em culpados ou criminosos. Em maior ou menor grau, todos somos responsáveis pelo nosso destino. Mesmo o necessitado tem obrigações para os que estão ao seu lado e para os que com ele se preocupam. É o seu exemplo que torna bem mais legítimas exigências redobradas, até decuplicadas, do ‘superego’ dos afortunados.

Em suma, cooperar com quem necessita não merece discussão. Dificílimo é resolver os dilemas quotidianos de como prestar ajuda a pessoas, comunidades ou povos que dela necessitam. Para as angústias do ‘ego’, resta o consolo da milenar sabedoria chinesa: ‘Não lhe dês o peixe, ensina-o a pescar’.

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