Este fim de semana, Vítor Gaspar espantou a imprensa com um keynesianismo que não ficaria mal na bancada do PS. Sim, Vítor Gaspar, esse mesmo, o rosto da “austeridade”, a voz do “neo-liberalismo”. O que recomenda ele, agora? Pois “políticas de expansão da procura” e “aumento do investimento público”. Arrependeu-se? Juntou-se aos bons?

Já vimos evoluções parecidas. Em 2002, Manuela Ferreira Leite congelou os salários, aumentou impostos, e quando lhe falavam de “mais medidas de austeridade”, declarava: “Devo dizer, com toda a convicção, que não hesitarei em tomá-las”. Valia tudo para chegar a um défice de 0% em 2004. Era a “dama de ferro”. Mas eis-nos em 2012, com o país novamente a equilibrar as contas à pressa, e onde está Ferreira Leite? A usar contra Vítor Gaspar todos os chavões que já tinham sido usados contra ela, a começar pela “total insensibilidade social”.

Estará Gaspar a preparar-se, também ele, para lamentar a “total insensibilidade social” de Mário Centeno, quando o actual ministro das finanças tiver de anunciar os 1000 milhões de euros em cortes que, segundo constou ontem, as instituições europeias esperam?

Não vou acusar ninguém de contradicção. Talvez Gaspar tenha sido sempre um keynesiano, como deu a entender na entrevista a Maria João Avillez, onde também revela que, em 1986, votou no candidato presidencial da esquerda contra o da direita. O que lhe aconteceu, entre 2011 e 2013, foi ver-se obrigado a cumprir um programa de ajustamento para poder pagar pensões e salários ao fim do mês. Faz lembrar Paul Krugman, quando passou por Portugal em 2012. Krugman decepcionou então todos os inimigos da Troika, ao explicar que sim, que não podia ver a austeridade, mas que em Portugal tinha de recomendar uma baixa de salários. Não, não era certamente contradicção: Krugman encontrava-se apenas no país errado, no momento errado. Como Ferreira Leite em 2002. Como Gaspar em 2012. Como Centeno em 2016?

Os oligarcas gostam de fazer de conta que há grandes margens de manobra doutrinária, num sentido ou no outro, para se darem importância e para melhor se acusarem uns aos outros. Na chicana partidária, gastar e cortar nunca são necessidades e possibilidades, mas apenas opções ideológicas ou programáticas: quem gasta é porque é “despesista”; quem corta, “austeritário”. Nada disso faz sentido. A verdade é que todos gastam e todos cortam conforme as necessidades e as possibilidades. A transição do despesismo para a austeridade foi feita ainda pelo próprio José Sócrates, forçado pela urgência de defender o crédito público; o alívio da austeridade começou com Passos Coelho, porque o sucesso do ajustamento o tornou possível e porque a aproximação das eleições o recomendava. Em Portugal, a dependência do Estado em relação ao seus credores externos impõe austeridade, e a dependência dos cidadãos em relação ao Estado impõe despesismo. É este o sistema. E enquanto esse sistema não mudar, será assim: quando é necessário, corta-se; e quando é possível, gasta-se – independentemente das ideologias e dos programas. Por isso, todos os partidos em Portugal já foram umas vezes “despesistas”, quando podiam, e outras vezes “austeritários”, quando precisaram.

A “austeridade”, aliás, entrou no horizonte da democracia por via do general Vasco Gonçalves, durante o PREC, em 1975. Por andar a ler Hayek? Não, o “companheiro Vasco” lia Marx, mas as reservas de divisas estavam a acabar, e o general convenceu-se de que os portugueses não podiam manter “padrões de consumo” inadequados às “possibilidades materiais da economia portuguesa”. Isso está escrito no programa do V Governo Provisório, quase só apoiado pelo PCP. Já toda a gente bebeu de todas as águas, e voltará a beber. As surpresas ficam para quem quiser.

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