1. Assim mesmo, é isto: obrigada Gulbenkian, parabéns Helena.

De tal forma que dispenso até a declaração de interesses a que a cota politicamente correcta me obrigaria, “esclarecendo” que fui convidada pela Gulbenkian para ir a Paris ver a exposição de Amadeo Souza- Cardoso. Fui, mas é indiferente, se não tivesse sido continuaria a dizer alto o que digo (e escrevo) há mais de trinta anos, sobre a Fundação: foi uma bênção ela ter pousado aqui, como uma nave vinda de outra galáxia. Uma bênção, um privilégio, uma sorte, tudo ao mesmo tempo: já lá vai mais de meio século de coisas formidáveis, em várias áreas, operadas, oficiadas, oferecidas a Portugal por este Estado dentro do nosso bem mais modesto Estado. É verdade, é.

Não pertencendo à “casa”, sinto que de algum modo sou “dali”, como desde os 13 anos sou do Benfica, por exemplo, são “pertenças”. E apesar de tudo, se não andei a dar chutos numa bola no relvado da Catedral (pouco faltou), pude assinar dois livros em estreita colaboração com a Fundação e ambos “encomendados” por ela.

Além do que aprendi, ouvindo os sábios que por lá têm passado, vendo magnifica pintura, usufruindo dos melhores maestros e instrumentistas do mundo, atravessando aqueles jardins. E quando um dia o dr. Rui Vilar (em boa hora) me desafiou para eu “contar” a cooperação efectuada over seas, nas Áfricas de expressão portuguesa pela Gulbenkian, ainda mais me pude aperceber de uma capacidade e qualidade invulgares que estão muito para além do que os meios financeiros só por si explicariam, como um distraído ou um apressado poderiam de repente supor.

Porque lembro ou enfatizo tudo isto agora? Porque as histórias, boas ou más mas esta é óptima, têm sempre um principio e o principio aqui é muito simplesmente este: não haveria o regresso de Amadeo Souza-Cardoso a Paris, nem Grand Palais, nem descoberta, nem surpresa, não fora Fundação Calouste Gulbenkian. O amável pretexto foi a comemoração dos seus cinquenta anos de vida na capital francesa que a “casa” celebra este ano. Ou seja e em resumo, Amadeo só entrou em cena -na talvez maior “operação” cultural jamais levada a cabo pelo nosso país aqui em França – porque foi levado pela mão da Gulbenkian. Uma empreitada: nem Amadeo era conhecido dos franceses nem a sua “trasladação” para Paris era fácil, nem era barata. A negociação, longa, paciente, exigente, arrojada, começou há quase dois anos mas pôde, dada a força e a inteligência dos negociadores, desaguar numa festa onde o assombro dança com o júbilo.

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2. Dez horas da manhã. Na penumbra silenciosa de uma sala do Grand Palais começa uma grande viagem. Viagem por uma vida breve num berço de verdes serranias e casas de pedra no Portugal rural e ensimesmado; depois, viagem de súbito e de chofre, por outra vida e outro mundo. Paris. Ateliers fervilhantes de” novidade”, serões boémios, sintonias artísticas, amizades crescendo como árvores, intensa criatividade. Palpitação.

Já sabíamos? Achávamos que sim – a família, a cozinha de Manhufe, o abandono dos estudos de arquitectura, a irradiadora descoberta do génio nos ateliers em Montparnasse, exposições, o Armory Show, Berlim e Brancusi e Modigllianni; o regresso, a fulgurância pictórica do fim, a guerra, a doença, a morte – mas não. Atravessar a vida de Souza Cardoso, atravessando as salas do Grand Palais prova-nos que afinal não sabíamos tudo. Ou que não sabíamos “por dentro” da alma e da mente do pintor, tanto movimento, tanta cor, tanta velocidade, tanta vibração, tudo tão forte: o futuro que já ali estava, a liberdade, a inquietação, a invenção, as escolhas, as renuncia a escolas, a recusa de etiquetas.

E tudo tão inteiro, Amadeo ali, vivo, em relevo, só lhe falta falar-nos naquelas fotos imensas de onde nos fita, sério, intenso, olhar escuro, fixo, afixado nas paredes. Amadeo que nos é apresentado, dado a conhecer, tanto quanto dado a ver e… eis que aqui reside, julgo eu, um dos pilares e êxito desta irrepetível (e completíssima) mostra: sai-se dali como se de pequeno tivéssemos conhecido aquele jovem que os deuses levaram cedo demais porque o queriam a pintar perto deles.

Parabéns Helena de Freitas, curadora desta exposição. (Helena, mulher afável e de gosto, companheira sempre disponível para conversar sobre a sua “obra”, é historiadora de arte e critica de arte. Autora de livros e ensaios sobre alguns artistas portugueses, dirigiu o Museu Paula Rego entre 2010 e 2013. É comissária da Fundação Gulbenkian desde 1987, onde realizou e promoveu inúmeras exposições e iniciativas.)

3. Sim, parabéns por esta curadoria que apetece dizer que talvez seja ainda mais do que isso pela forma fluida mas tão persistentemente, cuidadosamente, amorosamente detalhada como nos revela o pintor. Com um interesse e uma curiosidade que nunca esmorecem antes sempre aumentam, Amadeo vai-nos sendo apresentado para que ao vê-lo nas telas -e desenhos, fotos, aguarelas, gravuras – estejamos perante um amigo de longa data, da escola ou do peito.

Há cadernos de apontamentos, livrinhos de notas, cartas, fotos, cartões, convites, álbuns de desenho, excertos de entrevistas, frases, ambientes. Paisagens. A atmosfera do pintor. O seu mundo inquieto. E como um novelo que se desenrola, a sua vida e a vida que o rodeou, a que ele viveu e a dos outros: a família, o pai, o tio Francisco, Lucie, os amigos, os colegas de ofício, os próximos, os agentes culturais, os Delaunay. Almada que dizia que Amadeo era “a primeira descoberta de Portugal no século XX”, Pessoa reconhecia-o.

Mas há também que parar diante da instalação de vídeo (“Tour d’horizon”) de Nuno Cera, bem “intrometida” nesta travessia e há que ouvir a “Guerra”, composição do italiano Balilla Pratella (um eleito de Souza-Cardoso) que ecoa quando se desce uma escada em caracol, do primeiro piso da exposição para as salas do rés do chão. É lá que a mostra se prolonga, e é justamente a primeira guerra mundial que separa os dois pisos da exposição, como separa as duas “metades” da vida do pintor mas era preciso “sinalisá-lo. É a música de Pratella que o faz, introduzindo-nos na “segunda parte” mas… quanto fôlego conduzindo os pincéis de Amadeo, nos seus anos finais.

Procura, originalidade, simultaneidade. Fulgor escorrendo das paredes do Grand Palais. “Não é a vida que está ali?”, interrogava Almada diante de uma inspiração que nunca se deixou capturar por escolas, recusava os “ismos” e se queria arredia de movimentos.

Um dia Amadeo teve um sonho e contou-o numa entrevista que deu a um jornal português. Sonhava em expor as suas telas num transatlântico, que andasse para cá e para lá do oceano: “Ah, como isso seria belo e como isso se teria casado com a minha paixão pelo movimento, pela velocidade, pela febre da vida moderna…”

Com saber e sensibilidade, Helena de Freitas contou-nos muito bem esta história de um português “desconhecido” que a França talvez queira conhecer. Phillippe Dagen, (temível) critico do sempre muito estimado “Le Monde” — num dia em que o li numa daquelas admiráveis esplanadas de que Paris tem o segredo e o exclusivo –, escrevia que tinha uma certeza sobre Amadeo: “il y a lá un artiste passsionant”.
E bem antes dele, o director do Grand Palais, Laurent Salomé manteve sempre, quer em Paris, quer em Lisboa, quer no “berço” de Manhufe que também visitou, o mesmo espanto diante das obras do pintor: ”mas porque é que eu não conhecia este artista?”

E parabéns, Helena, cara curadora, também por isto: deu-me gosto verificar que a exposição mostrada nas salas, continuava de algum modo no interior da loja do museu, transpondo para o seu interior, o universo “amadeniano”: o catálogo, tão fecundo de textos e reproduções, as diversas publicações sobre o pintor, os guias da exposição, livros de autores portugueses da geração futurista já traduzidos para francês, textos da Revista Orfeu, peças em cerâmica (entre elas, uma coleção de xícaras de café que quem ma dera), vídeos, posters e postais em excelentes reproduções, por aí fora. Alta qualidade também aqui.

4. Juntando se a tudo isto, Christophe Fonseca assinou um soberbo filme sobre Amadeo que Portugal já viu na RTP, a França verá no início de Maio — patrocinado justamente, se não estou em erro, pelas televisões de ambos os países — e eu tive o privilégio de ver na Delegação da Gulbenkian, aqui em Paris, na companhia de Helena de Freitas (com larga intervenção no filme, de resto).

Português de terceira geração — a quem nunca porém ocorreu o uso do francês na conversa que tivemos — Christophe também nos descreve o pintor. Um homem, um artista, um personagem que ele não conhecia mas o talento e incrível rigor do seu “trabalho de casa” desaguaram num “retrato” quase perfeito que uma escassa experiência nestas aventuras tornam mais extraordinário. Notável a elegância e a substância da história que vai evoluindo no écran, a “pontuação” dos vários momentos, os personagens convocados, as joias encontradas nos baús de vários arquivos. E notável a intuição (e sedução) com que por vezes permite à sua câmara de cinema que “pinte” o écran com o mesmo estado de graça com que Amadeo pintou as suas telas (e veja-se por exemplo a paisagem ondulada de Manhufe nas telas de Amadeo e depois “pintada” por Christophe…).

Uma surpresa. A outra é o próprio Christophe, amante e militante de Portugal, mas isso fica para a próxima. Não há pressa: vai-se ouvir falar dele.

5. Dantes, a Gulbenkian em Paris era um “Centro”, hoje é uma “Delegação” da própria Fundação, explica-me o seu director João Caraça. Homem avisado onde o humor e a subtileza andam a par, João Caraça é doutorado em Fisica Nuclear, professor com obra publicada, director do Serviço de Ciência da Fundação Gulbenkian, desde 1988 até vir para Paris.

“A mudança de designação não foi só semântica”, assegura-me o meu interlocutor. “Ser uma Delegação pressupõe ir ter com as pessoas: somos pro-activos, comunicamos com o exterior, abrimo-nos à cidade”.

E como o fazem?

Diante de um prato de morangos silvestres que mais pareciam minúsculas contas vermelhas, este homem de ciência, hoje “doublée” de gestor, evoca-me “três braços”.

O primeiro, espevita debates e conferências à roda do pensamento contemporâneo e das grandes questões que interpelam hoje a sociedade e o mundo”. Como por exemplo — diz ele — “o problema da existência de línguas e culturas e diferentes e a sua articulação com um ‘todo’ que é a Humanidade”. O segundo “são as exposições, que ligam a Fundação à vida artística em Paris, através da escolha de novas formações de criação plástica, novos valores, e muitas vezes em parcerias com outras instituições portuguesas ou estrangeiras. E o “último braço” agarra a formidável Biblioteca, “a segunda maior de língua portuguesa fora de Portugal”: noventa mil volumes – literatura, história, ciência, antropologia, ciência politica — e um crucial desafio: reanimar a biblioteca e transformá-la num centro de recursos da era digital “de modo a que acolha todas as culturas que utilizam a língua portuguesa como meio de comunicação natural”.

Todo um programa. Norteado aliás pelo objectivo de sempre: “honrar a memória do fundador”. “Honramo-la através de actividades que estejam de acordo com o seu pensamento e que obviamente caibam dentro dos estatutos da Fundação”. Como esta de “privilegiar a língua” sabendo que “ao difundi-la, se promovem as culturas que a utilizam”.

Eis o que — de facto — não é só semântica, penso eu diante do prato já, hélas, vazio dos diminutos morangos.

6. À saída do Grand Palais, revendo Amadeo, pensei que para quem, em Portugal, se possa permitir o prazer desta viagem e a alegria desta exposição é muito simples resumi-la: é uma obrigação.