A retórica política transformou a pobreza em artilharia pesada das fraturas ideológicas entre a esquerda e a direita ultrapassando os limites da decência para legitimar a superioridade moral de um dos lados da barricada.

Descendo de famílias pobres e de secular tradição emigrante. Do lado paterno, o católico, a ascendência resulta da miscigenação entre árabes sírios e autóctones moçambicanos. Do lado materno, o islâmico, a ascendência vem de indianos gujarate (de provável ancestralidade paquistanesa) e mestiços de cruzamentos entre originários do Índico e autóctones moçambicanos. Depois de viverem noutras cidades, os meus pais fixaram-se no Xipamanine, subúrbio da antiga Lourenço Marques, hoje Maputo, cidade onde nasci. Tive a sorte de crescer na geração que saía da pobreza. Já vivia numa vivenda modesta nos arredores da cidade. Eram tempos em que a família tinha carro, bicicletas racionadas, idas ao cinema, à praia, férias distantes em casa de familiares. Pouco mais. Éramos também dos que não viam os negros no quintal ou a servir porque são família chegada.

O meu pai contava-se entre os simpatizantes da Frelimo, mas, como a família, poucos anos depois da independência rumou a Portugal. Para ele, não eram abstratas as probabilidades de ser vítima da guerra civil (1976-1992). Ia-se angustiando com o cheiro a pólvora, a sangue e a carne humana esturricada espalhados em vagões esburacados a tiro pelos então “bandidos armados”, hoje Renamo. Na época, era obrigado a viajar em comboios onde pagava salários aos trabalhadores do Caminhos de Ferro de Moçambique num percurso que se estendia por cerca de seiscentos quilómetros de mato.

Reproduzindo o fado de antepassados, em inícios dos anos oitenta cheguei a Portugal com a roupa do corpo e a mala de viagem. Entrei num ciclo de pobreza com um fundo de hostilidade em relação aos ‘brancos tugas’ que a vida foi corrigindo, mas que nunca me fez desvalorizar a justiça e dignidade da independência do meu país natal. Depois de ter sido acolhido na Casa dos Rapazes, em Lisboa, acabei por ir viver com a família numa barraca no Vale do Jamor, num meio muito marcado pela africanidade mestiça e negra.

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No quotidiano familiar desde o início ficou subentendido que a sociedade portuguesa abria, sem reservas, as portas das escolas e proporcionava possibilidades de trabalhar onde calhasse. Talvez porque os meus pais tivessem conhecido um outro ciclo de busca de uma vida melhor, vivíamos mais para mudar o destino do que para carpir misérias. Era a bússola cultural de cabeças do antigamente.

A partir dos quinze anos passei a reservar as pausas escolares (‘pequenas’ e ‘grandes’) para trabalhar no que aparecesse. A passagem pelo ‘lumpemproletariado’ imigrante africano acabou por se estender por cerca de uma década de onde saí diretamente para professor do ensino básico e secundário. Para além das obras, esses dias incluíram fábricas, hotelaria, estaleiros navais e, como não podia deixar de ser, a Siderurgia Nacional. Nada que atrapalhasse os estudos e uma vida de rua de bairro suburbano.

Entretanto, em poucos anos os dias da barraca haviam terminado. Em condições exigentes, foi possível ir amortizando um empréstimo bancário que permitiu a compra de um apartamento pequeno para o agregado familiar num meio mais aportuguesado. Lá nos encafuámos. Pai, mãe, cinco filhos, genro, sobrinho, avó. Três décadas depois e mesmo com vidas perdidas pelo caminho e outros obstáculos, os nossos dias nada têm de catastrófico.

Fui prosseguindo os estudos até que me vi com um certificado de doutoramento. Como prémio, recebo 1.495 euros de uma bolsa de pós-doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), pago mensalmente cerca de 500 euros pelo colégio do meu único filho (nisto vivo acima das minhas possibilidades), pago também mensalmente 243 euros à Caixa Geral de Aposentações e um Plano de Poupança Reforma de 150 euros. Mais os gastos do dia-a-dia. Vivo, portanto, numa invejável abundância financeira. Em 2013 tive ainda de suportar a viagem de trabalho a Moçambique, como havia feito no tempo das pesquisas para o mestrado. Se a vida não me der muito mais, dará certamente à minha descendência. Sinto-me moralmente obrigado a agradecer aquilo que Portugal permitiu que fosse fazendo por mim mesmo.

Porém, para que possa vislumbrar réstias de decência nos que se arvoram em donos da legitimidade do discurso sobre a pobreza ou sobre as minorias raciais, era útil que as elites políticas, muito em particular as de esquerda (socialistas, comunistas, bloquistas e demais), fossem relatando as suas experiências de vida. Sobra a sensação de posturas ignóbeis nos que enchem a boca de pobreza para abandalhá-la no imediatismo político que anima comícios, campanhas, convívios partidários e demais espetáculos e porque muitos o fazem a coberto de percursos pessoais e estilos de vida afortunados.

Quem teve de viver na miséria, na diferença racial ou que se vê forçado a recomeçar do nada sabe o cuidado, o recato, a ponderação exigíveis quando se mexe em dignidades esfrangalhadas. Tirando raros familiares e amigos íntimos, nunca levámos ninguém de fora a visitar-nos na barraca. Por mais de meia vida omiti o assunto de mim mesmo e de amigos e colegas de escola ou de trabalho. Os há muito íntimos, a minha mulher e o meu filho, souberam quando falei pela primeira vez publicamente do assunto em 2013. A miséria só não dói na boca dos outros. Por isso escapamos dela em silêncio. Também por isso, e se as pessoas é que contam, a pobreza jamais deveria ser politicamente instrumentalizada, por vezes a roçar o boçal.

Se me sinto afortunado foi porque cheguei a Portugal numa altura em que ninguém me estendeu a muleta do coitadinho, ninguém me viciou na ideologia dos subsídios. De então para cá vi-a crescer, institucionalizar-se e radicalizar-se sem que o mal social de fundo fosse debelado.

Nos tempos em que vivia no Vale do Jamor, nos anos oitenta, tinha um vizinho português branco que trabalhava, vendia ovos caseiros, tinha uma carrinha e condições de vida bem superiores às da minha família. O sujeito e respetiva família já lá viviam quando chegámos. Por lá continuaram quando, poucos anos depois, abandonámos a barraca (que entretanto alargámos, melhorámos e onde sofremos enxurradas dos que ficam com a parte dos terrenos que sobram) para regressarmos, agora na Europa, a uma habitação condigna. Quem sabe se aquela família, como outras, saiu de lá bem mais tarde, a custo e subsidiada aquando da requalificação urbanística da zona.

No bairro suburbano para onde me mudei nesses anos oitenta, a Cruz de Pau, na inevitável Margem Sul do Tejo, por muitos anos não me faltaram amigos e vizinhos, em particular portugueses, com condições socioeconómicas também mais favoráveis do que as da minha família. Porém, muitos deles não prosseguiam os estudos para além dos elementares. Também as obras e demais trabalhos incómodos atraíam preferencialmente os ‘pretos’ e um ou outro indígena ‘tapado’. Com o tempo e a idade, alguns tornaram-se dos que mais se queixam das dificuldades da vida, da falta de apoios, da falta de oportunidades. O facto é que a sociedade portuguesa sempre colocou à disposição deles e minha salas de aula e possibilidades de trabalhar.

Quem hoje efetivamente necessita é vítima de um novo-riquismo ideológico irresponsável que alimentou e alimenta a ilusão social de que o essencial da ultrapassagem da pobreza e dos obstáculos à afirmação social dos indivíduos, mas também a fabricação de fortunas pessoais, passa por fazer crescer o estado social até ao limite da implosão. Sendo o estado social decisivo, não se podem confundir funções delimitadas e apoios circunscritos e excecionais com a criação de dependências parasitárias que distorcem por gerações a relação cultural dos indivíduos com o meio envolvente.

O que temos diante dos olhos é um fenómeno de natureza cultural e civilizacional fundado em atitudes e comportamentos quotidianos face aos estudos – apenas sociologias e psicologias que alinham no coro da irresponsabilidade justificam a indisciplina nas salas de aula e a falta de estudo com os argumentos da pobreza e da exclusão social –, face ao trabalho, face a obrigações pessoais, familiares e cívicas que começam no que cada indivíduo faz por si mesmo com o muito ou o pouco que possui.

Fez ainda parte do meu percurso uma longa experiência de professor do básico e secundário em contextos com bolsas de pobreza. Junte-se uma também longa formação académica vocacionada para a análise de fenómenos sociais, mas que não serve de muito sem evidências empíricas na primeira pessoa. Acrescento o que vou conhecendo da realidade moçambicana de hoje.

Tudo ponderado, que valor se pode atribuir a discursos sobre a pobreza ou minorias raciais eivados de uma pretensa superioridade moral de ultrapolitizados como D. Januário Torgal Ferreira, Bagão Félix, Francisco Louçã, António Costa, Ferro Rodrigues, Jerónimo de Sousa, Isabel Moreira, Jacinto Lucas Pires, João Semedo, Jorge Sampaio, Carvalho da Silva, Pacheco Pereira, Catarina Martins, Rui Rio, Frei Bento Domingues, Sampaio da Nóvoa, Mário Soares, Daniel Oliveira, Mário Nogueira, Joana Amaral Dias, Bruto da Costa, Nicolau Santos, Sérgio Godinho, Rui Tavares, Pedro Abrunhosa, Heloísa Apolónia, Silva Peneda, etc., etc., etc.? A lista seria interminável de gente que, como qualquer farsante intelectual de meias-verdades, há décadas que se agita para impedir que o senso comum perceba a complexidade do que está em jogo quando se fala de pobreza ou minorias raciais e que permitiria minimizar com muito maior eficácia fenómenos sociais cuja génese tem a ver com atitudes e comportamentos quotidianos dentro e fora de casa.

Fabricar para exibir e cantar ‘sensibilidades sociais’ à custa da miséria alheia para insinuar ou prometer revertê-la também à custa de rendimentos e sacrifícios alheios, lucrando em troca popularidades e votos, é o zénite do nojo provocado pelo politicamente correto. Vasco Pulido Valente está carregado de razão (Público, “Envelhecer”, 08.02.2015).