As funções policiais do SEF relativas à gestão de fronteiras e ao combate às redes de tráfico humano devem ser redistribuídas por outras forças policiais e serviços de segurança e separadas das funções administrativas. Como, quando e com que protagonistas? Ainda ninguém sabe, mas o caso já motivou uma dura troca de palavras entre Eduardo Cabrita, um ministro em crise, e o diretor da PSP, que depende politicamente do Ministério da Administração Interna.

O anúncio foi feito durante a semana num comunicado que começava com uma citação do programa do Governo e terminava com o anúncio de demissão da então diretora do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) Cristina Gatões. Foi, aliás, a demissão de Gatões, nove meses depois do brutal homicídio de um cidadão ucraniano retido no aeroporto de Lisboa, que terá precipitado essa decisão.

Nesse dia, vários partidos reagiram à demissão daquela responsável e muitos exigiram a cabeça do ministro da Administração Interna Eduardo Cabrita. António Costa, o primeiro-ministro, viria a reforçar a confiança política no seu ministro e amigo de longa data. Marcelo Rebelo de Sousa, por sua vez, exigiria publicamente uma reforma profunda do SEF e deixando Eduardo Cabrita numa situação muito delicada. Em entrevista à SIC, o Presidente da República acabaria por confirmar que a reforma do SEF já estava prevista no programa do Governo e que o assunto já tinha sido falado entre Presidente e Governo.

Cabrita critica diretor da PSP e diz que não é “um diretor de Polícia” que anuncia reforma do SEF

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No sábado, a TVI avançava, e o Observador confirmava depois, que a extinção do SEF era a hipótese mais forte para o Governo, com a investigação dos crimes de tráfico de seres humanos a ser atribuída à PJ e o controlo das fronteiras à PSP. O MAI remetia qualquer esclarecimento para o comunicado já enviado, que de facto falava nesta reforma.

Já este domingo, porém, o Diretor Nacional da PSP, Magina da Silva, viria a anunciar ao país que propôs à tutela não a integração do SEF na PSP, mas a extinção de ambas as polícias (SEF e PSP) e a criação de uma Polícia Nacional, onde ambas fossem integradas à semelhança do que já acontece noutros países.

Pouco depois do anúncio feito após uma reunião que pediu para ter com Marcelo Rebelo de Sousa — para lhe entregar um livro da PSP publicado há duas semanas — Eduardo Cabrita acabaria por pôr um travão nas suas palavras, dizendo que “obviamente” estas decisões não são anunciadas por diretores da Polícia. O caldo estava entornado.

“Esta é uma matéria que o Governo está a trabalhar, envolvendo diretamente o primeiro-ministro, os ministérios da Administração Interna, dos Negócios Estrangeiros, da Justiça e a Presidência do Conselho de Ministros. É é neste quadro de envolvimento direto do primeiro-ministro e de quatro áreas governativas que teremos brevemente, de modo adequado, a explicitação daquilo que é a forma de dar expresso cumprimento ao Programa do Governo”, afirmou o membro do executivo. “Obviamente, com todo o respeito, não são anunciadas por diretores de Polícia”, disse.

Governo pondera acabar com o SEF

Enquanto se discute o que vai acontecer ao SEF, o Observador preparou-lhe seis perguntas e respostas para o ajudar a entender por que agora se fala em reestruturar o SEF e o que poderá acontecer a este serviço de segurança.

Quando se começou a discutir o futuro do SEF?

Já fazia parte do Programa do Governo “estabelecer uma separação orgânica muito clara entre as funções policiais e as funções administrativas de autorização e documentação de imigrantes”. Mas só esta semana o Ministério da Administração Interna anunciou em comunicado que esse objetivo iria ser postos em prática de “imediato”, num trabalho conjunto entre as Forças e Serviços de Segurança para “redefinir o exercício das funções policiais relativas à gestão de fronteiras e ao combate às redes de tráfico humano”. Foi nesse comunicado que o Governo aproveitou para anunciar que a então diretora, Cristina Gatões, cessaria funções de imediato.

A 15 de novembro, Gatões tinha dado uma entrevista à RTP onde falou no caso de homicídio de um cidadão ucraniano a quem foi barrada a entrada em Portugal,  no aeroporto de Lisboa, como um um episódio de verdadeira “tortura”. A acusação desse processo tinha sido proferida pelo Ministério Público no final do mês de Setembro, com três inspetores do SEF a serem acusados de homicídio qualificado.

Diretora do SEF entende que a morte do cidadão ucraniano no Aeroporto de Lisboa “foi uma situação de tortura evidente”

Para quando?

No mesmo comunicado, o MAI anunciava também que a redefinição de competências atribuídas ao SEF, em matéria de controlo de fronteiras e investigação criminal, seria distribuída “entre as diversas Forças e Serviços de Segurança” e que tal plano deveria ser concretizado durante o primeiro semestre de 2021. Este sábado, a TVI noticiou que o plano do Governo passava por atribuir as competências de investigação criminal à Polícia Judiciária e o controlo de fronteiras à PSP.

O que diz a PSP sobre isso?

O Diretor Nacional da PSP, superintendente chefe Magina da Silva, esteve reunido este domingo com o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa para “um balanço” sobre este ano de pandemia, segundo afirmou. E um dos temas em cima da mesa foi o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). No final, aos jornalistas, o chefe máximo da PSP disse que a sua proposta passa por extinguir a própria PSP e o SEF e criar uma Polícia Nacional, à semelhança do que já acontece noutros países que já há anos está a ser discutido em Portugal.

Primeiro, disse, Magina da Silva demonstrou um grande “desagrado” de como o “SEF está a ser tratado na praça pública”, elogiando os seus “excelentes profissionais”. “Segundo, o que tem sido anunciado e trabalhado com o Ministério da Administração Interna, passará não diria pela absorção do SEF pela PSP, mas a fusão entre a PSP e o SEF”, disse.

“Daí que tenha proposto que, como visão desta reestruturação, a PSP é extinta, o SEF é extinto e surge uma Polícia Nacional como aliás acontece em Espanha, em França e em Itália”, disse.

Magina deixou também uma mensagem aos elementos do SEF de que “irão ser bem tratados”, abandonando depois a sala e não respondendo a mais questões. Mais tarde acabou por emitir um comunicado, em resposta a Cabrita, explicando que esta é apenas a sua visão, e que uma “Polícia Nacional alinharia” o país “com a nomenclatura atribuída às polícias de natureza civil dos países em que existe um sistema dual de forças (uma força de segurança civil e outra militar), concretamente com as designações adotadas em Espanha (Policia Nacional), em França (Police Nationale) e em Itália (Polizia di Stato)”.

Diretor Nacional da PSP quer extinguir SEF e PSP para ter uma Polícia Nacional

E a PJ?

Ao que o Observador, este plano do Governo, que está a ser articulado diretamente pelo primeiro-ministro António Costa, passa por extinguir o SEF e PJ receberá a investigação do crime de tráfico de seres humanos. Por outro lado, a mesma fonte diz que o controlo das fronteiras terrestres e marítimas passará também pela GNR. Pelo que as funções poderão mesmo ser repartidas entre as duas polícias.

O que significa que os cerca de mil inspetores que trabalham atualmente no SEF poderão ser distribuídos por outras polícias. A ser na PSP ou na GNR, ficam na tutela da Administração Interna, a ser na PJ ficam na dependência do Ministério da Justiça.

Outra questão que esta mudança implica, se o SEF for integrado numa outra polícia, será a da avaliação salarial, uma vez que os salários dos inspetores do SEF são diferentes das outras polícias.

PJ pode ficar com as competências criminais do SEF e GNR com controlo de fronteiras

E o qual é a posição do Sindicato do SEF?

O MAI, no comunicado, anunciava também “com a máxima brevidade”, reuniões com as estruturas sindicais representativas dos funcionários do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Contactado pelo Observador, o presidente do Sindicato da Carreira de Investigação e Fiscalização do SEF, Acácio Pereira, recusou tecer qualquer comentário sobre uma possível extinção do SEF até ser formalmente informado pela tutela. No entanto, num artigo de opinião publicado no jornal Expresso, o responsável era claro em relação à sua posição: “juntar forças ou serviços de segurança ágeis, modernos e tecnológicos como o SEF, a contingentes enormes como a PSP ou a GNR que são pesados, burocráticos e servidos por uma péssima informática, prejudicaria toda a gente. A PSP e a GNR são grandes de mais para mudar a essência dos seus arcaísmos. E as virtudes do SEF seriam de imediato diluídas na mistura de dois enormes caldeirões” escrevia.

O artigo surgiu na sequência da decisão do governo em colocar os servidores das bases de dados da GNR, PSP e SEF num único edifício do ministério da Administração Interna (MAI), em vez de na sede de cada polícia. Uma decisão tomada em plena pandemia. Estas bases de dados estão arquivados todos os processos, fichas de suspeitos, investigações e relatórios da atividade policial. Acácio Pereira considerou à data tal ser um fusão “encapotada” das polícias.

Alguns sindicatos que representam a PSP têm criticado a decisão do Governo por considerarem que está a ser tomada na sequência do homicídio no aeroporto, o que por si só consideram não ser suficiente para extinguir uma polícia.

Mas há quantos anos se fala numa reestruturação das forças de segurança?

Já em 2005, era António Costa ministro da Administração Interna, o Governo encomendou um estudo à Accenture para reestruturar as forças de segurança. O estudo acabou por merecer críticas por ter uma visão demasiado economicista da reforma. Simultaneamente, encomendou um outro, para a reforma do modelo de segurança interna, ao Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI), então dirigido por Severiano Teixeira, que veio depois a ser ministro da Defesa. Este estudo apenas indicava cenários a seguir, não fazendo conta aos custos da reforma. Paralelamente, o Gabinete Coordenador de Segurança estudava a forma de reestruturar as áreas de responsabilidade da PSP e da GNR.

O Governo acabou por rever as leis de Organização Criminal e de Segurança Interna – da qual nasceu, em 2008, o secretário-geral de Segurança Interna para “velar pela boa coordenação, cooperação e partilha de informações entre os órgãos de polícia criminal”. Mas sem um sistema de informações comum e com as polícias dispersas por várias tutelas, a missão revelou-se quase impossível. À mesma conclusão chegaram outros estudos académicos sobre o mesmo tema.

Em 2012 o tema voltou a estar em cima da mesa durante o governo de coligação PSD/CDS, com o PSD a pretender uma Polícia Única mas sem o consenso do CDS. O plano do PSD passava por fundir PJ, SEF e PSP num corpo policial único, prevendo uma poupança de 136 cargos dirigentes e o congelamento das contratações entre três a cinco anos. A solução, revelou à data Passos Coelho, passava por “avançar com um sistema dual puro”. A ideia era criar uma força civil, denominada Polícia Nacional (PN) — que integraria a PSP, o SEF e a PJ –, e uma outra militar, a GNR, ambas sob tutela de um equivalente a um secretário de Estado.