Morreu esta terça-feira aos 96 anos de idade Carmen Dolores, confirmou à Rádio Observador o encenador Carlos Avilez, amigo próxima da atriz. “Carmen Dolores era uma atriz única”, afirmou Avilez, descrevendo-a como “uma grande senhora” com uma “voz linda”, que fez com que começasse a sua longa carreira de seis décadas na rádio.

A também atriz Lídia Franco, que conheceu a artista quando era pequena (a avó, Alice Ogando, dirigia o teatro radiofónico da antiga Emissora Nacional), lembrou Dolores como “um ser humano maravilhoso e único” que, além do seu legado artístico, “deixa também esse legado de humanidade, de dignidade”. “Acho que todos os meus colegas, sem exceção, a recordam como uma segunda mãe, não só na atenção que nos prestava sempre que nos aproximávamos dela ou quando sentia que precisávamos de alguma coisa, mas também no seu comportamento ético”, afirmou à Rádio Observador.

Lídia Franco lembrou também um outro legado de Dolores, “a maravilhosa obra da Casa do Artista”, que ajudou a fundar no final dos anos 90. “Era uma grande artista, da qual podemos sempre recordar (…) o trato, a delicadeza, o amor, a compreensão, o pôr-se no lugar do outro. São exemplos que deixa para todos nós.”

Lídia Franco: “Carmen Dolores era uma segunda mãe”

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Nascida em 22 de abril 1924, em Lisboa, Carmen Dolores ganhou múltiplos prémios durante uma longa carreira na representação. Durante cerca de seis décadas, atuou em quase todas as salas de espetáculos portuguesas, mas foi na rádio que começou, com apenas 12 anos, recitando poesia e fazendo teatro. Passou pela Rádio Sonora e depois pela Renascença e pelo Rádio Clube Português. Na década de 1940, estreou-se no cinema pela mão de António Lopes Ribeiro, em “Amor de Perdição” (1943), e no teatro com Os Comediantes de Lisboa, em “Electra, a Mensageira dos Deuses” (1945), encenada por Ribeirinho.

Em 1946, contracenou ao lado de Eunice Muñoz em “Camões”, de Leitão de Barros, no papel de Catarina de Ataíde. Despediu-se temporariamente do grande ecrã em 1952, com o filme “A Garça e a Serpente”, de Arthur Duarte, só regressando 20 anos depois, e já após o 25 de Abril, com “O Princípio da Sabedoria” (1975), de António Macedo. A pausa no cinema permitiu-lhe explorar outros meios, nomeadamente a televisão. Entrou em várias peças transmitidas pela RTP nos anos 60 e em séries e telenovelas, como a “Banqueira do Povo” (1993), a segunda “novela das sete” da RTP 1. Escrita por Walter Avancini e Patrícia Melo, a produção contava com Eunice Muñoz como a burlona D. Branca.

[Abertura de “Camões”, de Leitão de Barros:]

No teatro, após uma temporada com Os Comediantes de Lisboa, juntou-se à Companhia Rey Colaço – Robles Monteiro, concessionária do Teatro Nacional D. Maria II. Entre 1950 e 1958, integrou o elenco de cerca de duas dezenas de espectáculos, incluindo “Sonho de uma Noite de Verão” (1952), de William Shakespeare, e “Casaco de Fogo” (1953), de Romeu Correia. Tanto numa como noutra companhia, Carmen Dolores teve oportunidade de trabalhar de perto com experientes e reconhecidos atores, como João Villaret, Assis Pacheco,  Palmira Bastos, Aura Abranches ou a própria Amélia Rey Colação, foram responsáveis pela sua primeira formação, a que depois deu continuidade, nomeadamente nos cursos ministrados em Portugal por Henriette Morineau e Adolfo Gutkin, lembra o Instituto Camões.

“A ambição de participar na renovação do teatro português, que não acompanhava as experiências dramatúrgicas e cénicas que se desenvolviam no estrangeiro, levou-a a participar em várias companhias”, aponta o mesmo organismo no seu site. Após a temporada na Rey Colaço, integrou o Teatro de Sempre (Teatro Avenida), dirigido por Gino Saviotti. Entre os muitos espetáculos em que participou durante este período, contam-se, por exemplo, “O Gebo e a Sombra” (1958), de Raul Brandão, e a estreia em Portugal de “Seis Personagens à Procura de um Autor” (1959), de Luigi Pirandello. A peça de Pirandello valeu-lhe o Prémio Lucinda Simões na categoria “Melhor intérprete feminino de teatro declamado”, um dos muitos que recebeu ao longo da sua vida.

Adelina Campos e Carmen Dolores na peça “O Gebo e a Sombra” (1958), no Teatro Avenida, em Lisboa (Fonte: OPSIS – Base Iconográfica do Teatro em Portugal)

No final da década de 1950, voltou a trabalhar com Ribeirinho, desta vez no Teatro Nacional Popular (Teatro da Trindade), em peças como “Lucy Crown” (1959), de Irving Shaw, ou “Amor de Dom Perlimplim com Belisa em seu Jardim” (1959), de Federico García Lorca. Nos anos 60, criou, juntamente com Fernando Gusmão, Armando Cortez, Rogério Paulo e Armando Caldas, o Teatro Moderno de Lisboa (Cinema Império), participando em vários espetáculos com “função social” que serviram para o “despertar de uma geração”, descreve o Instituto Camões. “O Tinteiro (1961)”, de Carlos Muñiz, “Humilhados e Ofendidos” (1962), de Fiodor Dostoievski, ” O Dia Seguinte” (1964), de Luiz Francisco Rebello, e “O Render dos Heróis” (1965), de José Cardoso Pires, são algumas das peças cujo elenco integrou.

Em 1999, fundou com os colegas de profissão Raul Solnado, Manuela Maria, Armando Cortez e Octávio Clérigo a Casa do Artista, uma estrutura de apoio social aos artistas portugueses e suas famílias.

Após 60 anos de profissão, Carmen Dolores retirou-se dos palcos em 2005, com a reposição no Teatro Aberto da peça “Copenhaga”, de Michael Frayn, com encenação de João Lourenço. Em 2018, foi condecorada com as insígnias de Grande-Oficial da Ordem do Mérito pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. A condecoração foi atribuída no Teatro da Trindade, em Lisboa, no final da estreia da peça “Carmen”, um espetáculo de homenagem à atriz inspirado nas suas memórias com texto e encenação de Diogo Infante. Foi no Teatro da Trindade que Carmen Dolores se estreou, motivo pelo qual a sala principal do teatro tem, desde 2018, o nome da atriz.

A atriz já tinha sido condecorada em 2005, com o grau de Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, pelo então Presidente da Repúblico, Jorge Sampaio.

[Carmen Dolores foi homenageada em 2018 no Teatro da Trindade, em Lisboa:]

A ideia para o livro de memórias, Vozes Dentro de Mim, “surgiu inesperadamente” durante um recital do pianista Grigory Sokolov. O recital fez a atriz reviver os tempos da infância, na casa dos pais, em Lisboa, na Rua Visconde de Valmor, onde se ouvia música numa “grafonola, companheira de muitos serões”, confessou à Agência Lusa. Sem ser saudosista, Carmen Dolores defendeu que não se devem esquecer “os bons momentos” e “as pessoas que já não estão connosco”. A atriz foi entrevistada pelo Observador em 2017 também a propósito do lançamento de Vozes Dentro de Mim, que descreveu como estando cheio de “uma saudade” daquilo que podia deixar.

“É uma saudade daquilo que posso deixar. Não é nostalgia do que passou, nem melancolia porque lembro sobretudo as coisas boas — sem me esforçar muito por isso. Sei que sinto falta das pessoas que já cá não estão, não só da família como dos colegas mas isso é natural”, afirmou.

[Recorde aqui a entrevista de vida dada pela atriz ao Observador em 2017:]

Entrevista de vida com Carmen Dolores. “Ai, eu precisava agora era de ter 80 anos!”

Ministra da Cultura lembra “a voz inesquecível que trouxe poesia aos portugueses e o talento que ajudou a transformar o teatro em Portugal”

Num comunicado emitido durante a tarde desta terça-feira, Graça Fonseca lamentou “profundamente” a morte de uma “atriz de muitos recursos e talentos”, que teve um “papel fundamental na história do teatro contemporâneo em Portugal”, ajudando a transformá-lo.

Recordando a passagem da atriz pela companhia de Amélia Rey Colaço e o seu papel na fundação do Teatro Moderno de Lisboa, “uma instituição pioneira e marcante na história do teatro independente em Portugal”, a ministra da Cultura afirmou que “Carmen Dolores pertence a uma geração de atores que transformou o teatro em Portugal, entregando-lhe um saber e uma prática assentes numa relação de compreensão pela palavra, e a importância das suas consequências”.

“O seu percurso é marcado por exemplos onde o poder da interpretação não se extingue na relação entre o ator e o espetador, mas se prolongou numa luta constante entre a liberdade e a censura, entre a força e determinação em fazer vingar ideais e valores de defesa da dignidade humana, entre o político e a ação individual”, afirmou. “Carmen Dolores transformou o seu trabalho e o seu talento num legado único e num serviço de exceção à cultura portuguesa.”

Graça Fonseca fez ainda notar o papel de educadora de Carmen Dolores que, com a sua voz “única” e “inesquecível”, deu a conhecer “a diversidade e a riqueza da literatura portuguesa”.

Marcelo evoca “talento” e “carreira distinta” da atriz

Numa nota publicada esta terça-feira no site da Presidência, Marcelo Rebelo de Sousa evocou o “talento de Carmen Dolores, a sua carreira distinta” e “uma certa ideia” que a atriz tinha “de estar em palco e de estar no espaço público”. Lembrando a homenagem feita a Dolores no Teatro Trindade em 2018, o Presidente da República descreveu “esse reconhecimento, expressivo, simultâneo e constante, do público, dos pares e dos responsáveis políticos” como sendo “tão significativo quanto justo”.

Destacando o seu variado percurso artístico, que incluiu a interpretação rigorosa e elegante de “clássicos” e de “clássicos modernos”, “com uma presença que impressionou diferentes gerações”, Marcelo lembrou ainda o papel de Dolores na divulgação da poesia “e como autora de livros de memórias, o último dos quais intitulado Vozes Dentro de Mim. Vozes que se exprimiram na sua voz e dicção inconfundíveis, e que continuarão connosco e com os vindouros”, afirmou o Presidente, apresentando as “sentidas condolências” à família da atriz.