O Ministério Público já tinha confirmado ter aberto inquérito ao caso das duas crianças gémeas luso-brasileiras com atrofia muscular espinhal que em 2020 foram tratadas no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, com o medicamento Zolgensma, um dos mais inovadores, que, à época, custava 1,9 milhões de euros por doente. E agora a investigação terá transitado para as mãos da Unidade Nacional de Combate à Corrupção da Polícia Judiciária, que também estará a passar a pente fino a grande celeridade do processo de naturalização das menores, através do Consulado Geral de São Paulo, revelada pelo Observador no ano passado. Ainda não há arguidos constituídos, estando a ser investigados pela PJ eventuais crimes de tráfico de influências e abuso de poder, noticia hoje o CM e a RTP, a poucos dias de o antigo secretário de Estado Adjunto e da Saúde António Lacerda Sales ser ouvido em comissão de inquérito, na próxima quinta-feira.

Questionada pelo Observador este domingo sobre se confirmava estar a coadjuvar a investigação do Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa, fonte oficial da Polícia Judiciária limitou-se a responder: “Não confirmamos”.

As duas crianças viviam no Brasil e chegaram a Portugal já com uma consulta marcada naquele hospital central, onde viriam a receber o fármaco. O caso inicialmente denunciado pela TVI apontava as suspeitas de influência no processo por parte do Presidente da República, que tem garantido nada ter a ver com o caso.

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Aliás, recentemente, o Presidente da República, num encontro com correspondentes estrangeiros, confirmou o corte de relações com o filho depois de o caso ter sido noticiado, como consequência das iniciativas que Nuno Rebelo de Sousa levou a cabo para que as duas crianças tivessem acesso a este tratamento — parte dessas comunicações foram feitas junto da Presidência da República. “É imperdoável, porque sabe que tenho um cargo público e político e pago por isso”, disse perante os jornalistas de diversas nacionalidades, sublinhando, mais uma vez, que não conhece as gémeas que receberam tratamento.

Quando o caso foi tornado público, no ano passado, quem assumiu ter usado contactos próximos da nora de Marcelo Rebelo de Sousa (que vive também em São Paulo) para assegurar o tratamento das filhas em Lisboa foi a própria mãe das bebés. E nos bastidores do Hospital de Santa Maria, a história há muito que era falada, como confirmou a então presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Norte, a atual ministra da Saúde, Ana Paula Martins: “Sei que se fala nisso”, disse na mesma reportagem.

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De facto, duas inspeções já mostraram irregularides no processo. A Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) concluiu que “não foram cumpridos os requisitos de legalidade no acesso das duas crianças à consulta de neuropediatria neste estabelecimento de saúde, uma vez que a marcação da consulta não cumpriu o disposto na Portaria n.º 147/2017, de 27 de abril, que ‘Regula o Sistema Integrado de Gestão do Acesso dos utentes ao Serviço Nacional de Saúde (SIGA SNS)’”. Acrescentando que “a prestação de cuidados de saúde decorreu sem que tenham existido factos merecedores de qualquer tipo de censura”. Também o Santa Maria, em auditoria interna, considerou que a marcação da primeira consulta não cumpriu as regras, ao ter acontecido a pedido do então secretário de Estado António Lacerda Sales.

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Mas outros detalhes ficaram por esclarecer. Como o Observador revelou, todo o processo de naturalização das duas gémeas brasileiras, em 2019 pouco antes de serem tratadas em Lisboa, durou 14 dias. Apesar de o Instituto dos Registos e Notariado (IRN) garantir ao Observador ser o prazo normal, está muito longe da realidade enfrentada pelos cidadãos que esbarram em prazos muito alargados para este tipo de processos.

Em novembro, o Ministério Público acabaria por confirmar a abertura de um inquérito. “Confirma-se a instauração de inquérito  relacionado com os factos referidos. O processo encontra-se em investigação no Departamento de Investigação e Ação Penal Regional de Lisboa e, por ora, não corre contra pessoa determinada”.