Abuso de poder, burla qualificada e prevaricação. São estes os crimes que estão na base de uma operação de buscas que a Polícia Judiciária lançou na manhã desta quinta-feira, relacionado com o caso das gémeas confirmaram o Ministério Público e a PJ em comunicado.
A operação de buscas decorre no Ministério da Saúde, no Hospital de Santa Maria e na casa de Luís Pinheiro, ex-diretor do hospital, pelo caso das gémeas tratadas com o medicamento Zolgensma, avançou a TVI e confirmou o Observador. O ex-secretário de Estado da Saúde, Lacerda Sales foi também alvo de buscas, no início da semana e constituído arguido por abuso de poder.
As buscas no Ministério da Saúde decorrem no antigo gabinete de Lacerda Sales, e na sua base estão suspeitas de abuso de poder e prevaricação, sabe o Observador.
Caso gémeas. Lacerda Sales pede para adiar audição por motivos profissionais
Ao que o Observador apurou, a Polícia Judiciária também de fez buscas ao domicílio de Daniela Martins no concelho de Cascais. A mãe das gémeas luso-brasileiras Lorena e Maité deu essa residência ao Hospital de Santa Maria e os inspetores da PJ deslocaram-se ali para buscar documentação importante para o caso.
Além do Hospital de Santa Maria, o Observador também sabe que foram realizadas buscas na unidade de Cascais do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental.
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Mensagens de email de Lacerda Sales passadas as pente fino
Ao que o Observador apurou, foram realizadas buscas a várias entidades da Segurança Social em Lisboa e o centro das atenções nas buscas judicias ao ex-gabinete de Lacerda Sales no Ministério da Saúde são os emails trocados por Sales com um conjunto determinado de pessoas e que estão alojados nos servidores do Ministério da Saúde.
A caixa de correio eletrónico de Lacerda Sales vai ser passada a pente fino, sendo certo que as mensagens que foram trocadas com a sua ex-secretária e com outros membros do seu gabinete, assim como responsáveis do Hospital de Santa Maria, como o ex-diretor clínico Luís Pinheiro, são a prioridade dos investigadores.
A casa de Lacerda Sales em Leiria, foi alvo buscas da PJ na segunda-feira, dia em que o antigo secretário de Estado da Saúde pediu para adiar a sua audição na comissão de inquérito parlamentar sobre este caso, alegando não poder estar presente por motivos profissionais.
O assunto remonta a 2020, tendo levantado a polémica da influência exercida pelo Presidente da República e da interferência do ex-secretário de Estado para que as duas gémeas residentes no Brasil, que adquiriram nacionalidade portuguesa em tempo recorde, tivessem tratamento preferencial e recebessem o Zolgensma, com um custo total de quatro milhões de euros, para a atrofia muscular espinal.
Comunicados do DIAP de Lisboa, da PJ e do Ministério da Saúde confirmam buscas
Na nota de imprensa do MP, que pode ler aqui, lê-se que as buscas estão a ser feitas para “recolha de documentação”, nas “instalações do Ministério da Saúde e da Segurança Social, a duas unidades do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e a domicílio”. No comunicado, o MP explica que “em causa estão factos suscetíveis de configurar, nomeadamente, crime de prevaricação, em concurso aparente com o de abuso de poderes 8…) e burla qualificada”.
Já a PJ adianta em comunicado que cumpriu 11 mandados de busca e junta aos crimes referidos pelo MP, o de tráfico de influência. “Com a realização desta operação, procura-se a recolha de equipamentos de telecomunicações, informáticos, prova de natureza documental, correio eletrónico, elementos que serão submetidos a exames e perícias, tendentes ao cabal esclarecimento dos factos”, lê-se na nota. Participaram nesta ação “cerca de 40 inspetores da Unidade Nacional de Combate à Corrupção e peritos da Unidade de Perícia Tecnológica e Informática da Polícia Judiciária, além de diversos magistrados do Ministério Público e magistrados judiciais.”
Também o Ministério da Saúde confirmou a realização de “diligências de investiga nas suas instalações, durante as quais foi garantida a total colaboração e acesso a documentos e dados informáticos. O Ministério da Saúde reitera a total disponibilidade para colaborar com a Justiça”, lê-se no comunicado.
Candidatos às eleições europeias reagem a buscas judiciais
Em campanha, os cabeças de lista dos partidos às eleições europeias, marcadas para dia 9 de junho, têm reagido às buscas realizadas na manhã desta quinta-feira. Na Figueira da Foz, a antiga ministra da Saúde afirma não ter tido “nada a ver com isto” e diz acreditar que “cada entidade tem de fazer o seu papel” e que “confia nas instituições”. A candidata do Partido Socialista assegura ainda que o caso não contaminará a campanha e diz imaginar e “esperar, naturalmente” ainda vir a ser ouvida pela polícia. Na mesma linha, João Cotrim de Figueiredo, que recusou comentar o caso, considerou que o timing não vai influenciar as eleições. O cabeça de lista da Iniciativa Liberal afirmou também que não vai deixar que a campanha seja “poluída por temas nacionais”.
Na Maia, João Oliveira, da CDU, referiu apenas que espera que “a investigação criminal faça o apuramento dos casos que precisa de fazer” e recusou fazer “aproveitamento político de casos judiciais”.
Referindo-se a Marta Temido, Sebastião Bugalho recusou comentar as investigações em curso, “muito menos em ambiente eleitoral sobre alguém que disputa essa eleição comigo. Seria uma irresponsabilidade democrática e cívica fazer isso”. O cabeça de lista da AD às Europeias argumentou ainda que não faz “comentários sobre o vazio”.
O que revelou a auditoria do Hospital de Santa Maria
Conduzida pelo Hospital de Santa Maria, a auditoria aos casos de administração do Zolgensma concluiu que foi o à época secretário de Estado da Saúde da Saúde a marcar a consulta para as gémeas luso-brasileiras, reforçando-se assim as suspeitas de favorecimento no caso.
A auditoria, aberta no dia 9 de novembro e concluída em dezembro, também apontava para o modo como a marcação foi feita: por telefone, através da Direção de Departamento de Pediatria. Esta deve ser uma das principais linhas de investigação, já que poderão existir suspeitas de abuso de poder por parte de responsáveis do Ministério da Saúde e do Hospital de Santa Maria.
O documento também revelou que o Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN), onde o Santa Maria se integra, tratou dez crianças com atrofia muscular espinhal desde 2019, com um custo total superior a 15,4 milhões de euros.
Segundo o documento, as duas gémeas luso-brasileiras foram “referenciadas pelo Secretário de Estado da Saúde (segundo registo do dossier clínico)”. Embora a auditoria nunca refira o nome do governante em causa, a formulação surge sempre no masculino (secretário de Estado), o que indicia tratar-se de António Lacerda Sales, já que, no final de 2019, era um dos dois secretários de Estado da ministra Marta Temido — o elenco governativo do Ministério ficava completo com Jamila Madeira, também Secretária de Estado.
Referenciação das gémeas foi a única exceção na marcação de consultas em Santa Maria
No documento, existem quatro referências ao secretário de Estado da Saúde, e que confirmam que o ex-governante interveio no sentido de marcar a consulta para as gémeas. Na audição no Parlamento, na manhã de 13 de dezembro, a presidente do Centro Hospitalar e Universitário de Lisboa Norte, que integra o Santa Maria, referiu-se sempre à marcação da consulta como tendo sido realizada pela Secretaria de Estado da Saúde e não pelo secretário de Estado, evitando apontar nomes.
Relatório da IGAS conclui que gémeas tiveram acesso irregular à consulta do SNS
O relatório final da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) concluiu que o acesso das gémeas luso-brasileira ao SNS foi irregular e que a primeira consulta das crianças não cumpriu as regras legas, uma vez que a marcação de consulta de Neuropediatria no Hospital de Santa Maria foi pedida pela Secretaria de Estado de Saúde, como a auditoria do Santa Maria tinha concluído. No entanto, de acordo com o IGAS, uma secretaria de Estado não tem competência para solicitar agendamento de consultas médicas.
A IGAS confirmou assim que “não foram cumpridos os requisitos de legalidade no acesso das duas crianças” pois a “marcação da consulta não cumpriu o disposto na Portaria nº147/2017 de 27 de abril”. E acrescentou que “a prestação de cuidados de saúde decorreu sem que tenham existido factos merecedores de qualquer tipo de censura”. Na mesma nota, informou que deu 60 dias para serem implementadas três recomendações no hospital, no Infarmed e na Secretaria-Geral do Ministério da Saúde.