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Da bifana de Ramsay ao "paellagate" com chouriço de Jamie Oliver. Quando os chefs tocam nas vacas sagradas da cozinha

Usarem a palavra tradicional e adulterarem o prato a seu bel-prazer provoca alguma urticária aos povos que sentem na pele um ataque às suas gastronomias. Os chefs também pecam e a internet cobra-lhes.

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Poucas coisas são mais controversas no mundo da cozinha que a luta pela autenticidade, sobretudo se falarmos de comida tradicional deste ou daquele país — as pessoas ficam irritadas, revoltadas e defensivas quando um chef ou cozinheiro acrescenta, substitui ou omite ingredientes numa receita que vêem como intocável por constar no receituário tradicional onde ninguém pode meter o bedelho.

A causar comichões por cá, e ainda é tema quente da semana que passou, esteve Gordon Ramsay, o controverso chef inglês que esteve em Portugal para gravar um episódio da sua série Uncharted — que estreia cá a 15 de outubro no National Geographic — dedicado à comida portuguesa. Ainda em junho, o chef partilhou um excerto do programa onde se deixou encantar pelo Alentejo e pelos ingredientes portugueses, acabando a preparar um pequeno almoço digno de campeões: ovos, porco preto e legumes salteados. O vídeo foi partilhado pelo próprio no Twitter, gerando desde logo polémica entre os portugueses que não consideram a refeição um pequeno almoço típico do país.

Ovos e porco preto: o pequeno almoço dos campeões e de Gordon Ramsay em Portugal

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A escolha da legenda para acompanhar o vídeo é que não foi a mais consensual: “À procura do pequeno almoço de Portugal perfeito?”. Quem adultera o típico pequeno almoço português parece estar a roubar uma joia sagrada, pelo menos é o que a internet e as reações de muitos portugueses a este pequeno excerto demonstraram.

O pequeno almoço servido por Ramsay no Alentejo ©Gordon Ramsay Website

Gordon Ramsay Website

Esta semana, o burburinho fez-se à volta de uma versão que Ramsay decidiu fazer daquela que é a bifana portuguesa. Se é daquelas iguarias que parece não ter grande segredo — pãozinho e uma carne de porco bem temperada, preferencialmente cheia de molhanga —, para Gordon que decidiu criar a sua própria receita a bifana vai além disso. Leva queijo, rúcula, cebola e até pimentos. É uma boa sandes, com bom aspeto.

“Vá lá companheiro, não brinques com a nossa bifana que nós não brincamos com os teus fish and chips”, escreveu uma pessoa no Instagram, onde o vídeo foi partilhado. “Parece espantoso, mas não é uma bifana tradicional. Não lhe pomos queijo nem nada. Apenas carne de porco espantosa num pão português fresco”, disse outro. A gafe está quase no final do vídeo quando Ramsay lhe chama “tradicional” e foi o que acabou por enfurecer alguns, apesar de elogiarem a sandes que tinha acabado de sair dali.

O chef Rui Paula, do DOC, DOP e Casa de Chá da Boa Nova, também ele já fez a sua interpretação do que é uma bifana portuguesa. Se o faria assim como Ramsay? Não. “Eu não faria assim a minha interpretação da bifana, mas não vou nem posso condenar. Eu vejo isto de outra maneira: eu sinto-me honrado que falem do nosso país”, diz ao Observador. “Acho que nos devemos sentir honrados pelo facto de um chef como o Gordon Ramsay, que tem provas dadas e não é só um chef televisivo, ele já trabalha há muitos anos, vir falar da nossa comida, acho que é desse prisma que temos de ver as coisas, não temos de analisar a forma como o faz.”

Rui Paula não vê motivos para polémica nem para difamações ao chef inglês, e afasta que este momento com a bifana ou o do pequeno almoço sejam razão para “tamanho problema”, diz. “Eu acho que não há motivo para haver polémica nenhuma, isto é a mesma coisa que eu vá falar de um país e faça interpretação de um prato que goste de fazer. Para quê o alarido?”, questiona. O chef diz que “toda a gente sabe o que é uma bifana tradicional” e que, inclusive Gordon Ramsay “saberá o que é uma bifana”, mas que optou por “fazê-la assim”.

Aliás, a apropriação cultural pela comida não é uma questão para o chef. “Aqui não há apropriações, sabe? Não existe apropriação na comida. Cada chef tem de ter a sua consciência e o ADN de cozinha muito bem vincados, qual é o nosso conceito e o nosso caminho, e se os outros copiarem copiaram. As pessoas que sabem mesmo estão sempre à frente do tempo”, remata. “De um prato não se podem fazer patentes, não sei o que as pessoas pretendem com isto.”

Está o caldo entornado. O caldo verde, diga-se

A CNN Travel, o canal de viagens da estação televisiva norte-americana, elegeu o Caldo Verde como uma das 20 melhores sopas do mundo. Não mentiu quando colocou no ranking uma das mais tradicionais sopas do nosso país, mas o problema não residiu nessa distinção, veio depois quando uma colunista e autora de livros de cozinha, Felicity Cloake, decidiu partilhar no The Guardian uma receita para fazer o caldo verde “perfeito”.

A receita de Felicity Cloake no jornal inglês tinha batatas aos pedaços ©The Guardian

O gastrónomo Virgílio Gomes não foi de meias medidas e não poupou críticas a esta versão que é tudo, menos perfeita. “O que acho piada é o topete dos ingleses, que têm uma comida nojenta, quererem criar um caldo verde perfeito”, disse em março à revista Sábado.”O caldo verde, como é apresentado, não é o nosso. Não é aquela a couve. Em Inglaterra não encontram a portuguesa no mercado, por isso a jornalista usa outra, mas usar outra não a torna perfeita.”

Cloake diz que o caldo verde é uma “comida de conforto brilhante”, e se falta a alguém uma “avó portuguesa para lhe fazer um”, qual é a melhor maneira de o fazer? Felicity explica passo a passo na sua receita. A fotografia partilhada no jornal não é a imagem habitual que se tem de um caldo verde feito em casa ou comido numa qualquer tasca da cidade. Este é mais amarelado e tem pedaços de batata em cubos a boiar na malga. Apesar de reduzir o caldo da sopa a uma espécie de puré, Cloake decide guardar algumas batatas para finalizar a sopa com pedaços — algo que não é comum no tradicional caldo verde. O Twitter foi um dos focos da polémica — como quase sempre — onde muitos portugueses questionavam precisamente a batata e o aspeto final da sopa do Guardian.

O bacalhau quer alho e não chalotas, malaguetas ou raspa de limão

Jamie Oliver, o chef estrela britânico que também já se arriscou numa receita de caldo verde menos polémica, acaba também ele sempre nas bocas do mundo por se atrever a mexer em algumas receitas tradicionais e achar que ninguém vai reparar nas suas adaptações. Em 2015, Jamie ousou partilhar no seu Facebook uma receita de bacalhau à brás e os portugueses puxaram dos seus galões e do seu melhor inglês para inundarem a publicação de comentários negativos, acusando o chef de não saber o que é o verdadeiro bacalhau à brás.

Isto é bacalhau à Brás que se apresente, Jamie?

“Acabou de incorrer na ira de uma nação inteira. Deixe-me tentar mediar isto como um cidadão britânico/ sul-africano que vive em Portugal. Não, isso não está nem perto, desculpe. Claro que é delicioso o suficiente, mas precisa de encontrar um nome diferente para o prato antes de começar a 3.ª Guerra Mundial”, apontou um utilizador, e logo outro a seguir deixou o convite: “Vem a Portugal, a minha mãe pode cozinhar um bacalhau para ti e sei que vais adorar!”

As reações iam oscilando entre a simpatia e a negação: “Apenas uma rápida atenção – Bacalhau à Brás não é fish and chips” ou “Sou um grande fã seu mas lamento dizer que o seu estilo de Bacalhau à Brás não soa muito bem”.

Jamie Oliver não usou alho na sua receita de Bacalhau à Brás ©Jamie Oliver/Facebook

Na lista de infracções de Oliver constavam críticas como não utilizar alho, e incluir ingredientes como chalota, malagueta, vinagre e raspa de limão. Em defesa do chef, um moderador do seu site disse que “Jamie e a equipa fizeram muitas pesquisas sobre este prato” e que a receita tinha vindo até de Maria de Lourdes Modesto.

A Riberalves, conhecida marca de bacalhau, apanhou a onda da polémica e acabou até por convidar o chef a vir a Portugal para descobrir como se faz bacalhau a sério. “Para quem não acompanhou o processo: conhecemos uma curiosa interpretação da receita tradicional de Bacalhau à Brás, agradecemos a Jamie Oliver a divulgação da gastronomia portuguesa e agora convidamo-lo a vir a Portugal descobrir o maravilhoso mundo do bacalhau”, escreveram no Facebook.

Caras amigas e amigos; o nosso convite ao simpático Jamie Oliver já seguiu também em formato de carta. Para quem não…

Posted by Bacalhau Riberalves on Friday, February 20, 2015

Jamie Oliver já tem uma longa lista de sacrilégios culinários no CV e, em português, não se ficou pelo bacalhau. No seu livro Jamie’s 30-Minute Meals, de 2010, consta por lá uma receita de pastéis de nata, ou “portuguese custard tarts” onde o chef decide usar  crème fraîche para fazer o creme desta doçaria tão adorada pelos portugueses. Crème fraîche, repetimos. Como se isso não fosse pecado o suficiente, Oliver decide finalizar os pastéis deitando-lhes em cima caramelo de laranja — alguém deveria ter explicado ao chef que a cor mais escura dos pastéis vem do forno e não de nenhum caramelo.

O vídeo da receita vai sendo partilhado de vez em quando e numa partilha de 2018, Jamie Oliver relembrou os portugueses deste seu erro. “Não admira que todos os britânicos estejam a comprar bilhetes de avião para virem a Portugal. Quem é que come isso? Não, mesmo depois de uma dúzia de cervejas, pode-se dizer que isso é saboroso. Pastel de Nata: Não o tente fazer em casa, coma-o em Portugal”, uma internauta portuguesa aconselhou no Facebook.

A BBC Good Food já deu o mesmo passo arriscado quando em 2015 decidiu partilhar uma receita de pastel de nata, ou “egg custard tarts”. Problema: a receita levava 250 ml de natas. Um erro colossal na hora de fazer o recheio da instituição que é o pastel de nata.

Isto são pastéis de nata que se apresentem, BBC?

O queijo cheddar que levou à perda de uma estrela Michelin e a um euro de indemnização

Ficou conhecido como o “cheddar gate” e meteu o chef francês Marc Veyrat nas bocas do mundo e o Guia Michelin em tribunal. Tudo por causa de queijo. O restaurante La Maison des Bois de Marc Veyrat ganhou a terceira estrela Michelin — a máxima distinção — em 2018, mas em janeiro do ano seguinte o guia retirou-a. O chef francês e o seu inconfundível chapéu preto acabou a levar caso à justiça, e por ser o primeiro chef a processar o Guia.

Chef francês processa Michelin após perder terceira estrela

O objetivo foi forçar os inspetores a entregar os documentos que explicassem o porquê de ter sido retirada a terceira estrela a este restaurante dos Alpes franceses. De acordo com Veyrat, citado pela APF, a perda da terceira estrela aconteceu por, alegadamente, os inspetores terem julgado que este tinha colocado cheddar num suflê em vez de reblochon, beaufort e tomme, os três queijos franceses que compõem a receita. “Coloquei açafrão e o inspetor achou que era cheddar porque era amarelo. É uma loucura”, explicou o chef na altura.

O caso, que se tornou conhecido pelo seu mediatismo e por ter na base um banal queijo cheddar, estendeu-se até 2020 com a justiça francesa a dar razão ao Guia Michelin, dizendo que o cozinheiro francês e a empresa SCS Marc Veyrat não entregaram qualquer prova relativa a prejuízos ou outros danos morais. Isto porque o chef recorreu à justiça para pedir um euro simbólico de compensação pela depressão que alegou ter sofrido após a perda de uma estrela Michelin. Segundo o tribunal, Marc Veyrat não conseguiu justificar que tenha havido “um ataque desproporcionado à independência da avaliação”.

Veyrat, que tinha criticado a decisão da Michelin, chegou a pedir que o seu restaurante fosse retirado do guia, mas a organização recusou fazê-lo.

“Paella” com chouriço? Sim para Jamie Oliver, não para os espanhóis

O típico prato do país vizinho foi um daqueles em que o chef estrela decidiu pôr as mãos, adulterando-o. Resultado: uniu contra si os espanhóis, que não gostaram que Oliver tivesse tocado nesta instituição gastronómica. No final do ano de 2016, Jamie Oliver decidiu anunciar com orgulho a sua versão da paella, dizendo numa publicação do Facebook: “A boa comida espanhola não fica muito melhor do que a paella. Esta minha versão combina coxas de frango suculentas, chouriço fumado e camarões”, escreveu.  O problema tornou-se muito claro para o povo espanhol que se insurgiu perante tamanho crime gastronómico para a nação: a inclusão de chouriço na receita, que é típica da região de Valência.

A internet acabou por rebentar com a publicação e os cibernautas acusavam Jamie Oliver de “vandalismo cultural”, disseram uns; “Nem tudo o que tem arroz é paella“, diziam outros aqui citados pelo Guardian. Alguns dos críticos ofereciam satiricamente as suas próprias interpretações de fish and chips usando beringelas, pato, carne de vaca ou ravioli.

A controvérsia surgiu porque Oliver decidiu usar chouriço ©Jamie Oliver Facebook

E apesar da polémica que estalou pelas redes sociais, meses mais tarde, Jamie Oliver marcou presença no The Graham Norton Show da BBC e foi confrontado com alguns dos comentários feitos à data da publicação da receita que foram uma autêntica escavação humorística à reinterpretação do prato. “Eles foram medievais comigo. Fui trend ao longo de semanas. E recebi ameaças de morte e todos os tipos de ameaça por causa de um pouco de chouriço”, acrescentou. ​​“A propósito, só para vossa informação, fica melhor com chouriço. Confiem em mim ou não ”, disse Oliver, sem arrependimento.

José Andrés, chef espanhol sediado nos Estados Unidos e um dos mais populares no mundo, também acabou por sair em defesa de Oliver e disse na altura: “Pessoas de Espanha! Já sei que esta foto não parece uma paella. Mas é um ‘arroz espanhol’…vamos deixar o Jamie em paz!”

Pizza margherita com tudo a que se tem direito, se faz favor

O pedido veio dos italianos zangados que reagiram, em 2018, a uma inovação perigosa de Carlo Cracco. As coisas já não iam bem para o chef italiano quando o Guia Michelin de 2018 decidiu retirar uma estrela do seu restaurante homónimo em Milão, mas ficaram piores quando ousou mexer numa receita tradicional da icónica pizza margherita apresentando uma versão “saudável” desta iguaria.

Apesar de não parecer a coisa mais estranha que se acrescentou a uma pizza, esta versão de Cracco enfureceu os italianos. A crosta era feita de uma combinação de trigo integral, sementes e cereais, finalizada com um molho de tomate mais denso — semelhante ao do ragu — e “pétalas de mozzarela” crua por cima e tomates confitados.

“Estamos certos de que ninguém irá de propósito ao Cracco para comer a sua pizza margherita revisitada, exceto talvez algum estrangeiro disposto a experimentar o seu novo restaurante”, disse um crítico local citado pelo site de gastronomia Eater.

Mas os comensais não ficaram revoltados apenas com a barbaridade de uma pizza saudável, foi também o preço cobrado pelo chef: 16 euros. “Alguém aconselhou o chef a descer das estrelas e vir até ao nível das ruelas de Nápoles, não como um pizzaiolo famoso, mas como os padeiros que fazem pizzas que custam apenas 2 euros”, escreveu o jornal Corriere della Sera. “Por 16 euros aqui em Nápoles também se pode comer zeppole e panzarotti, assim como uma grande cerveja e ainda ter troco”, disse um residente de Nápoles, a cidade onde nasceu a histórica pizza Margherita.

Qual é a melhor pizza margherita de Lisboa? Este é o nosso teste, ingrediente a ingrediente

O escritor napolitano Angelo Forgione liderou as críticas, alegando que a nova criação gastronómica não era mais do que “uma pizza quebrada”, segundo o The Telegraph. Outro purista observou que Cracco, antigo jurado do Masterchef italiano, tinha perdido recentemente uma estrela Michelin e foi mais longe. “Depois de fazer a sua própria ‘pizza’, tiram-lhe não só as suas outras estrelas Michelin, mas também a sua cidadania italiana e a sua carta de condução”, disse citado pelo jornal britânico. Gino Sorbillo, outro chef estrela, saiu em defesa de Cracco dizendo que no fim de contas a pizza é apenas um snack, não uma vaca sagrada. “Pessoal, eu gostei da interpretação de Carlo Cracco”, escreveu Sorbillo. “Não é napolitano, é a sua própria pizza e é isso.”

Em dezembro de 2017, a arte de fazer pizza napolitana foi galardoada pela UNESCO com o estatuto de património imaterial da humanidade. Poucos meses depois, um atentado gastronómico sob a chancela de saudável e com estrela Michelin causava tumulto entre os italianos. Italianos esses que detêm páginas de Twitter e Instagram dedicadas aos pecados culinários cometidos contra a comida italiana — chama-se “italians mad at food”. Por lá, leem-se (e lamentam-se) relatos de verdadeiros atentados a pizzas, massas ou sobremesas de Itália, com humor e imagens que podiam ficar enterradas nos tesourinhos deprimentes da gastronomia. Uma pizza com kiwi ou uma massa de amêijoas com alecrim?

O pecado capital da carbonara e uma torrada proibida a hipertensos

Nigella Lawson é uma cozinheira que sabe como pôr as pessoas a falar sobre si, seja com receitas simples do agrado de todos, seja com verdadeiros atentados que causam furor e polémica nas redes sociais. Em 2017, por exemplo, a chef britânica teve de se manter bem afastada de Itália, caso contrário, teria muitos italianos furiosos à perna com a sua mítica receita de carbonara — uma das vacas sagradas da gastronomia daquele país. Nigela quis fazer uma homenagem a uma cena de Jack Nicholson e Meryl Streep em Heartburn e usou crème fraîche e noz moscada na sua receita, considerados personas non gratas para os puristas deste prato.

O Facebook e o Twitter arderam em comentários negativos a esta receita com comentários como: “Nigella, és uma mulher maravilhosa, mas as tuas receitas são a MORTE das receitas italianas, literalmente! CREME NA CARBONARA NUNCA, apenas ovos” ou “Nigella, há muitas cozinhas no mundo que precisam de ser tratadas com natas, a melhor cozinha do mundo, nomeadamente italiana, não precisa que a estrague!”. A chef televisiva veio depois dizer que a receita “não era completamente autêntica” mas era “totalmente saborosa”.

Mas os momentos de Nigella vs. Internautas Revoltados não ficaram por aí. Mais recentemente, em novembro do ano passado, a estrela de cozinha decidiu ensinar a fazer torradas no seu programa da BBC​​ “Nigella’s Eat, Cook, Repeat.” — mas torradas à maneira dela, muito peculiar por sinal.

Para Nigella não basta um pedaço de pão numa torradeira onde depois de tostado é barrada manteiga. Não. Nigella é mais demorada na hora de fazer a sua torradinha. Primeiro o pão torra e Nigella deixa a manteiga derreter sozinha, depois a chef diz que “esta é a apenas a fase um” da dita receita — depois vêm mais umas quantas barradas generosas de manteiga “sempre daquela sem sal” que é assim que a britânica mais gosta. No fim, polvilha a torrada com pequenos grãos de sal marinho. Os fãs e seguidores habituais da autora de cozinha aclamada, sobretudo os britânicos, não ficaram contentes e até questionaram a sua sanidade: “Isto é o que estar trancado em casa todos estes meses de confinamento fez connosco”, escreveu um utilizador do YouTube nos comentários ao vídeo partilhado pela BBC.

A “double buttered toast” dividiu opiniões, mas o peso das negativas da balança foi claro. “É razoável dizer que só a Nigella é que se podia safar desta depois de nos ensinar a fazer torradas”, escreveu Alex Massie, colunista do The Times; “Continuo sem perceber porque é que ela diz para usar manteiga sem sal e depois polvilha com sal, em vez de usar manteiga salgada”, escreveu um internauta cético; “Nigella na BBC2 agora, mostrando-nos como fazer torradas! Graças a Deus por isso, perdi a receita”, disse outro.

A dividir a nação esteve também uma outra receita de Nigella — Marmite Pasta. Quando a trouxe de novo à tona, isto porque já estava num livro de Lawson de há uma década, a chef assumiu que poderia causar controvérsia, mas que era uma das suas receitas favoritas. Marmite é uma pasta escura, salgada e com a consistência pegajosa, feita de extrato de levedura, e muito popular entre os ingleses — mas não tanto na hora de fazer esparguete com ela. Defendeu-se também dos possíveis “ataques” de italianos dizendo que a receita não era sua, mas sim de Anna del Conte, a icónica autora de culinária italiana. “Nãooooo, ela deve ter bebido muitos Spritz. O meu filho que é italiano quase morreu com isto” ou “Tenho de esconder isto dos meus amigos italianos” ou ainda “Vou usar isto para acabar com meu marido italiano, ele pode chorar se vir isto” são apenas alguns comentários no Twitter e Instagram onde a chef partilhou a receita.

Vinho branco e natas: os assassinos da bolonhesa

A icónica chef e autora de livros de cozinha Mary Berry, conhecida pelos seus clássicos culinários à prova de falhas, também já esteve debaixo de fogo quando decidiu fazer Ragù alla Bolognese, no seu programa da BBC 2 em 2017. As instruções da chef de 86 anos para um molho “delicioso” à bolonhesa dividiram os espectadores do programa de televisão quando esta decidiu adicionar dois ingredientes invulgares: vinho branco e natas gordas. Berry disse no programa que lá em casa podiam adicionar “branco ou tinto, o que quer que tenha à mão”, embora ela preferisse o vinho branco na receita.

Depois, vieram as natas que a chef disse ser o seu “segredo” que “só enriquece” a receita. E o caldo estava entornado. “Querida Mary Berry, isto NÃO é Ragu Bolognese. É, porém, um bom molho de tomate”, disse um utilizador no Twitter citado pelo Telegraph, outro rematou com: “Ragu Bolognese?? O que é isso…vinho branco…natas, ervas… está a quebrar todas as regras da cozinha italiana”. Um editor da BBC achou, no entanto, o contrário:“Foi uma Brexit Bolognese. Não precisamos mais dos italianos para nos dizerem como cozinhar. Retomamos o controlo dos pratos de massa. #maryberry”, escreveu.

O chef Antonio Carluccio, que morreu com 80 anos em 2017, tinha precisamente criticado no ano anterior os britânicos que estavam a arruinar a comida de Itália, ele que era conhecido como o “padrinho da gastronomia italiana”. A crítica veio sobretudo no sentido do uso de ervas e aromáticas — Berry usou tomilho, louro e manjericão — em tudo o que são receitas italianas, mas Carluccio estava indignado com a bolonhesa em específico.

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Mary Berry deitou vinho e natas no molho bolonhesa ©BBC

O chef, depois radicado em Londres, revelou na altura que ficou chocado quando foi pela primeira vez à capital inglesa e descobriu o que estava a ser servido nos ditos restaurantes italianos. “Havia esparguete à bolonhesa, que não existe em Itália. Em Itália, é tagliatelle bolognese, com tagliatelle e bolonhesa acabada de fazer, sem qualquer erva”, disse, citado pelo Telegraph. Afirmou que os britânicos assumem naturalmente que os pratos italianos necessitam sempre de ervas como o manjericão. “Quando se pensa em Itália, começa-se a pôr orégãos, manjericão, salsa, alho, o que não é de todo [certo]”, acrescentou. O ícone da cozinha disse ainda que em Itália “a comida não está na moda”, até porque cozinhar é uma forma de expressão que pode ser feita “em qualquer altura, não simplesmente porque é uma coisa da moda”.

Frango frito ao estilo coreano, mas a fingir

A cadeia de hambúrgueres Shake Shack, de Danny Meyer, esteve também debaixo de fogo no início do ano por ter lançado  — ainda que por um breve período de tempo — um menu “Korean-style” que foi alvo de críticas por ser uma interpretação livre e pouco fiel ao real frango frito coreano, tendo assim sido acusados de apropriação cultural.

O menu foi lançado por todos os estados dos EUA e apresentava uma sanduíche com frango frito com cobertura de gochujang e uma salada de kimchi, batatas fritas servidas com molho de gochujang e um batido de baunilha com açúcar preto. Pouco tempo depois da revelação, algumas pessoas criticaram a empresa online por parecer empenhada na apropriação cultural. Outros utilizadores das redes sociais argumentaram que adicionar ingredientes como kimchi e um molho de gochujang a outros produtos do menu e rotulá-lo como “frango frito ao estilo coreano” era uma interpretação preguiçosa daquela comida. Outros encorajaram os comensais a visitar restaurantes coreanos locais nos seus bairros.

“Sim, põem algum gochujang em alguma coisa, e é coreano”, Giaae Kwon, uma escritora baseada em Nova Iorque escreveu no Twitter, citada pelo New York Post. A Eater também citou o comediante Dash Kwiatkowski: “Parece que um grupo de pessoas brancas junta tudo num monte de coisas porque o percebem como coreano e depois lucram com essas coisas”.

Em resposta às críticas de apropriação cultural, o diretor de operações culinárias do Shake Shack, Mark Rosati, diz que poderia “definitivamente ver como alguém poderia pensar isso [a apropriação]” com o lançamento do novo menu. “Posso compreender até certo ponto, mas nunca consigo compreendê-lo totalmente, porque não é a minha cultura”, disse Rosati. “É algo que queremos ouvir, e compreender”.

©Cortesia Shake Shack

Cortesia Shake Shack

“Chamamos-lhe ‘estilo coreano’, porque é a nossa versão de uma sandes tradicional coreana de frango frito, e é uma ligeira variação do que é servido nos nossos Shacks da Coreia do Sul”, afirmou, dizendo que quando o menu foi lançado houve um trabalho de pesquisa feito junto com entidades e restaurantes coreanos.

“Bem, que outro tipo de interpretação se espera de uma cadeia global de restaurantes de fast food?”, escreveu Steve Cuozzo, crítico gastronómico e escritor no New York Post. “É um grande mundo lá fora, e se um chefe de um restaurante italo-americano quiser ‘roubar’ uma receita da Tailândia, ou um chefe de cozinha turco-americano se dignar a reinterpretar um prato grego, não é uma atrocidade ‘cultural’ no mesmo campeonato de saques de arte da Alemanha nazi”, acrescentou.

Cuozzo acabou até por dizer que “resmungar é compreensível” em alguns casos, como quando chefs mexicanos nos EUA tentam ganhar a vida enquanto um chef não mexicano — neste caso em concreto o aclamado Rick Bayless — é tido como o melhor “chef mexicano dos Estados Unidos”, com restaurante Topolobampo em Chicago onde Obama é cliente.

Também a polémica à volta de Bayless se tornou assunto de discussão já por várias vezes, precisamente pelo tema da apropriação cultural.

Rick Bayless é um mestre da culinária mexicana, mas é também um homem branco do Oklahoma e isso, ao longo dos anos, tornou-o alvo de críticas. Que propriedade tem o chef para ser considerado um dos melhores chefs mexicanos sem sequer ter ligações à cultura mexicana? É a questão que muitos fizeram e ainda fazem. Questionado sobre isso numa entrevista, em 2016, com a americana National Public Radio (NPR) sobre como se sentia quando lhe tiravam a credibilidade por causa da sua origem, Rick disse que essas pessoas “simplesmente não querem ter uma conversa” e que criticam só porque querem apregoar uma visão política da coisa. “Sei que tem havido uma série de pessoas que me criticaram apenas — e apenas — por causa da minha raça. Porque sou branco, não posso fazer nada com a comida mexicana. Mas temos de parar e dizer: ‘Oh espera, então isso é racismo puro e simples?’”, disse.

Bayless é bilingue e passou anos a viajar pelo México e, por isso, tem propriedade para fazer o seu trabalho. “Não vem de uma compreensão superficial, vem de uma compreensão profunda. Fiz tudo o que pude para a tornar minha”, referiu à NPR.

Num artigo de 2012 do The New York Times, Francis Lam explora essa questão de chefs sem raízes familiares numa determinada cozinha poderem conseguir evangelizar essa comida quando os próprios imigrantes lutam para o fazer. “Um cozinheiro nascido nos Estados Unidos é mais provável do que um imigrante ter as contactos e os meios para atrair a atenção dos investidores ou dos meios de comunicação social. Ainda mais se o cozinheiro surgiu através de um restaurante ou escola culinária de prestígio”, escreveu Lam.

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